domingo, 16 de setembro de 2012

PARA AS LACUNAS

Na minha busca constante de construção de sentido, uso frequentemente três dicionários:

o Houaiss Eletrônico, para a falta de palavras,
o de Teatro, para a falta de conceitos,
e o de Pequenas Solidões, para a falta de pessoas.





* NOTA: Dicionário de Pequenas Solidões, livro de contos de Ronaldo Cagiano.

NATIMORTA

Minha poesia nasceu morta quando eu - toda prosa - escrevi meu primeiro verso de pé quebrado.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A FRASE DO CAIO VAI ME DOMINANDO HORA APÓS HORA

"Gosto de pessoas doces, gosto de situações claras; e por tudo isso, ando cada vez mais só." 

A constatação de que mais alguém no mundo se sente tão sozinho quanto eu não faz eu me sentir menos sozinha.

A frase do Caio Fernando Abreu me corrói por dentro como ácido. Me espeta. Como se pedregulhos se revolvessem no meu estômago, doendo e pesada, ela se espraia para além de suas margens e devasta todos os campos da minha mente, quanto mais passa o tempo. Se para o Edgard de Nelson a frase de Otto era o câncer, para mim o tumor é esta pequena joia do Caio. Curioso que sejam ambos escritores de três nomes.

E constato, ao olhar para trás, que talvez o meu destino seja mesmo a solidão. Percebo o quanto estive, estou, sou, sempre, serei, sozinha, no meio de todos os grupos por onde andei. Fui sempre a margem. À margem. Sou a rebarba. Sempre a peça tentando se encaixar. Nunca encontrando seu lugar. Sempre perguntando, nunca entendendo. Sempre sendo a última a saber. Nunca sendo convidada para coisa alguma. Exceto quando posso ser útil.

Defendo, como louca, o estar em grupo, o fazer em grupo. E vejo finalmente que nunca soube o que é isso. Talvez por isso o defenda apaixonadamente: como a uma meta, um prazer apenas de sonho, um prêmio idealizado, um troféu que nunca tive nas mãos. Porque estive sempre do lado de fora, tentando entrar. Forçando a porta. Pulando o muro. Andando por perto para ver se algo me agregava naturalmente. Ou artificialmente. Mas se me agregava. Fui sempre a CDF a que faziam o supremo favor de conceder um pouco de atenção, pela insistência dela – ou pelo constrangimento de tê-la ali, como um vira-lata com a língua de fora postado à janela, aguardando as migalhas do banquete.

Quantas e quantas e quantas e quantas vezes fui abandonada por todos os meus amigos – simplesmente porque não eram meus amigos? Quanto já me senti de fora, porque eles me deixavam de fora, e eu achava que estava dentro, então me sentia traída quando percebia que todos sabiam de tudo, todos combinavam tudo, todos planejavam tudo... Menos eu? Como podia ser eu traída por eles se ninguém me havia chamado ali?

Pessoas ásperas... Pessoas áridas. Deboche. Olhares enviesados, sorrisos maldosos por cima dos meus ombros. Eu, feita de maciez e açúcar, que nunca compreendo coisa alguma de dureza ou secura, hoje olho para tudo isso, e vejo quantos, tantos! E me embruteço. Tudo o que chega a seu extremo vira seu oposto.


Situações turvas, situações baças... Torpor. Confusão. Confusão que só serve para me usar, me perder, me descartar. Eu, que coleciono em minha alma astrolábios imemoriais, cartas náuticas e bússolas.

Preferível estar sozinha sabendo que estou sozinha. Aliás, como já disse aquele outro eu, materializado em outra Pessoa que veio antes de mim: "Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho!". À parte a diferença de não querer nunca ser sozinha, mas constato, uma vez mais e sempre: já disse que sou sozinha.

Porque gosto de pessoas doces e só encontro cascas secas.
Porque gosto de situações claras, e sempre me apagam as luzes.
Por tudo isto, aqui dentro ando cada vez mais só.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

REVISITADA

Nestes dias de descanso, de corpo pesado na cama depois de um dia inteiro de caminhadas, novas formas, olfato e paladar acariciados pelo aveludado do bom café, cores e plantas variadas, riqueza para os olhos, calor ao toque e frescor de cheiros num bom banho de água tépida, águas de gostos e gases tantos vários, eu, que me pensava já liberta, vejo-me como Macbeth visitada por meus fantasmas. Fantasmas daquilo o que matei - não por ambição desenfreada, como ele, mas por necessidade de sobrevivência. Para quebrar os grilhões que me atavam ao círculo de ansiedade, cansaço, cobrança, falta de reconhecimento, raiva, sobrecarga, incompreensão e sobretudo a mais completa ausência de liberdade - de ações, de movimento, de escolha, de fala, de pensamento mesmo, que começava a ficar formatado entre quatro paredes beges e mofadas.

Meus fantasmas têm me visitado em meus sonhos, sistematicamente, há uma semana. Creio que seja uma faxina mental inconsciente que minhas férias estejam promovendo, que os esteja expulsando de seus porões, onde eles se refugiaram há um ano, e agora eles se aproveitam do meu corpo cansado e da minha mente vazia para me assaltar na calada da noite. Sonho com o mesmo tema: estou de novo presa em meu trabalho antigo, com as mesmas pessoas, num malabarismo constante para conciliar a necessidade de dar conta com a vontade de ir embora.

Aff. Espero que as águas cristalinas desta montanha que chora me lavem por fora e por dentro. Definitivamente.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

OUTRA ENCRUZILHADA

Bom. Quando a vida chega numa encruzilhada, o jeito é escolher o caminho da correção e seguir por ele, confiante de que é o correto, ainda que pareça sombrio e estéril. Às vezes você acha que já chegou lá e é só uma parada na estrada. Por mais que esteja confortável, você tem que prosseguir, para sua meta, para sua meta... É preciso passar por caminhos tortuosos para chegar lá, lá no arco-íris onde o pote de ouro se encontra...




"Se você não sabe aonde está indo, qualquer lugar servirá" (Lewis Carroll).

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CONTAGEM

Cansada desta vida de mesquinharias. De contar os trocados para uma cerveja. De contar os minutos para sair do trabalho. De contar os amigos nos dedos de uma mão. De contar carneirinhos para dormir. De contar as misérias ao analista. De contar vantagem sobre os outros para. De contar quantas vezes o telefone tocou no último mês. De contar mentiras pra si mesma para sobreviver. De não ter com quem contar.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

SOLILÓQUIO

O quão sozinhos estamos no mundo. O mal-do-século é a solidão: cada um de nós imerso em sua própria arrogância esperando por um pouco de afeição. L’enfer? L’enfer sont les autres. L’enfer est être tout seule. Gentileza não gera gentileza. Gentileza gera frustração. A gente acha que encontra no outro alguém para nos ouvir. Mas todos só querem falar. Eu também quero falar, que diabo. Ninguém escuta ninguém. Eu também não escuto ninguém. Todos imersos em seus fones, ouvindo suas rádios particulares. Como você está? Não responda, foi uma pergunta retórica. Deixa um recado no face que eu te respondo. Melhor. Eu curto seu comentário. Tempo que a gente não se vê, não conversa! Vamos sair hoje? Curtir. E a resposta? Curtir é a resposta. Sim ou não? Vamos sair? Mas você tem coisas mais importantes para fazer com seu novo amigo de infância. Até que ele esteja ocupando demais flanando na internet. Estamos todos sozinhos neste mundo, nem quem te ama consegue paciência para te ouvir. Porque estão todos ocupados demais contando os próprios projetos. Um diálogo de dois solilóquios. E eu finjo ter paciência.

ENGARRAFAMENTO

É tarde e eu tenho que chegar. Mas o sinal abre fecha abre fecha abre fecha e ninguém se move. Buzinas ecoam atrás de mim. Eu também buzino, ouvido no som e cabeça lá. Vontade de chegar, vontade de chegar logo, mas logo não existe às seis e meia na Avenida Rio Branco. Quero retornar, mas as vias transversais só descem, as ruas são em mão única nesta cidade. Os relacionamentos também. Quero retomar o contato é só dá ocupado. Telefone ocupado. Cabeça ocupada. Lugar ocupado, viajo em pé no ônibus lotado, com um desgraçado ouvindo funk no celular último modelo, ouvindo funk para o ônibus inteiro. Quero chegar, preciso chegar logo, preciso chegar no horário, mas o motorista perdeu a hora e nos prendeu no engarrafamento de dois quilômetros avenida afora. Um carro fecha o cruzamento e a faixa de pedestres. Pessoas passam pela frente e por trás do carro. Deviam passar dentro. Deviam passar por cima. O motorista está ocupado demais para se importar, falando ao celular enquanto (não) dirige no trânsito. Está ocupado fechando negócios à distância. Ou mantendo a família no lugar à distância, dizendo que não chegará a tempo para o jantar. Talvez tenha coisas mais importantes a fazer, mais três empregos para dar conta, a secretária para comer trancado no escritório enquanto a esposa ensina o dever aos três filhos. O motoboy passa zunindo entre os carros ônibus vans escolares, berrando a potência que tem entre as pernas no seu escapamento sem silencioso. Ensurdece e irrita. São dúzias, são legiões de motoboys ocupados em correr com as encomendas de seus contratantes. Cinco minutos para chegar ao Bom Pastor. Próxima entrega no Mariano Procópio. Motoboy caído na Avenida Independência, foi atropelado? Caiu sozinho. Resgate acionado, esse pelo menos usava capacete. Tenta se levantar, mas obrigam-no a ficar deitado sob a chuva fina que começa a cair, polarizando o frio do início árido de agosto. O trânsito continua parado porque o motorista do Gol lá da frente não arrancou assim que acendeu o verde. Só ele conseguiu passar a tempo, amarelo vermelho fechou, já era, mais quatro minutos de espera inútil. Queria ter um carro monstro. Impaciento-me ao volante, só sei viver nesta cidade neurótica se estiver ocupada. Tiro a sobrancelha. Limpo o painel. Arrumo a bolsa. Mando mensagens pelo celular. Retoco a maquiagem. Quem vai sentado no ônibus pode ler, mas acaba cochilando a cabeça ensebada no vidro da janela. Mais de uma vez liguei e deixei recado. Mais de um par de vezes mandei mensagem. Uma dúzia de vezes mandei e-mails. As mensagens no facebook se sucederam, e você sempre ocupado para me responder. Desejei feliz aniversário. Desejei melhoras da gripe. Convidei para o teatro. O barzinho. O show. O cinema. Tudo em mão única. O executivo que avançou o sinal e parou na faixa entra na primeira à esquerda. Contramão. Fica preso entre carros e pedestres. Não tem espaço para manobrar, seu sedan é grande demais para a falta de espaço das nossas ruas. Encontro com você no calçadão e você me torce o nariz, me cumprimenta por obrigação, me olha com desdém. Mão única. Não consigo entender o que fiz. Não consigo entender o que não fiz. Você está neurótico como o trânsito desta cidade. Contramão. Éramos tão amigos. Sinal fechado.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

RETALHOS

Não é que eu abra mão da minha vida para criar; é precisamente porque a vida abre mão de mim é que me refugio na arte como algo que, de teimosa, me prende aqui.

* * *

Que é a vida, senão amores a esquecer?

Contínua sucessão de dias opressores, noites vazias.

E tudo isso é vazio de sentido.

A vida é feita de encontros, pontos no infinito. Por mais que você viva a vida inteira com alguém, por mais que seja a vida inteira, são pontos efêmeros no eterno.

Feita de flashes curtos, nua sucessão de efêmeros, pequenas sinapses. O pequeno, descontínuo e miúdo é o que faz a vida, como pontilhismo.

segunda-feira, 28 de março de 2011

MOSAICOS

Sua vida começa a se delinear à sua volta. Levara quase trinta anos a prepará-la, moldá-la, construí-la, costurá-la,  eis que sem que ela percebesse muito bem como ou quando tudo começava a tomar forma. As peças do quebracabeças, quase unidas, mostravam vislumbres de sua casa, relances de seu dia a dia futuro, espectros de seu futuro marido. Desta vez, tomara o rio que desaguaria no altar? Se perguntava  ao mandar mais um sms pelo celular. Desde os vinte ela vinha se preparando - para o quê, meu Deus? Não sabia dizer. Mas sabia, tinha a certeza de que aos vinte e oito estava exatamente onde deveria estar, a última peça seria colocada e a figura ficaria completa.

Se preparava para o quê, meu Deus!? Mas estava quase pronta.

(Há uns dois ou três anos, quando o terror dos trinta me rondava a porta)

SCRIPT BARATO

 - E aqui, no fim de todas as coisas, neste pérfido quarto de hotel de quinta, sento-me nesta cadeira manca e acendo este cigarro. O cigarro é cênico. (Ela acende o cigarro.) Eu não fumo.

(Dá uma longa tragada. Após alguns segundos, exala com a garganta, boca aberta em O, um espesso anel de fumaça. E ela se põe a decidir em pensamento os rumos da nação.)

- Cacos debaixo do tapete.

ESVAZIAMENTO

Amo tudo o que amo cada vez menos. Tudo o que me é caro já o foi muito mais, antes. E ainda não sei se isso é um problema ou se é a solução.

Amo menos as coisas. As pessoas. Os lugares. E não estou mais bruta ou seca por causa disto. Comovo-me, alegro-me, fico feliz, me delicio, mas tudo isso passa. Não, não estou embrutecida. Estou mais livre, eis tudo.

E é simples; quanto menos se ama, menos se prende, mais se anda, mais se voa. Pelicanos voam, barcos não. Não voa quem tem asa: só voa quem não tem âncora.

Não tenho tudo o que amo. Mas, que me importa? Nada que me ama me tem.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

DITADURAS

Hoje, falei. Falei o que precisava. Falei o que queria. Hoje, me fiz ouvida, me fiz vista e considerada. E isto me fez feliz, ao menos por hoje.

Mas, amanhã, o certo é que nada mude. Minhas palavras, quem sabe?, serão arquivadas nos porões – ou da memória, ou do descaso.

O fato é que não me importa mais. Fiz o que me cabia, e isto foi muito. Falar é sempre muito quando se vive numa ditadura. Mas, infelizmente, é pouco quando se vive numa ditadura maquiada de democracia. Nestas, o sublime e sagrado dom (direito?) da expressão serve não como agente de mudança, mas como válvula de escape da tensão acumulada, dos sapos engolidos – ex-pressão. Com a ilusão de que temos voz e vez, voltamos ao conformismo que faz de nós seres omissos, esperando que um dia tudo mude, que tudo mude de repente, que a mudança caia como por encanto em nosso colo.

(29/11/2010)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

VALENDO

Pois é. E eis que chga o dia, planejado meio a medo, de parar de adiar a vida que se quer ter. Talvez não ainda o dia de se começar a colher, mas sem dúvida o dia de juntar as ferramentas e ir plantar em outro canteiro.

Já sinto o cheiro do fim. É o mesmo cheiro do novo que desponta, vida recém-saída do plástico.

Muito vai mudar. Ou talvez pouco apenas se ajuste, pois a grande mudança se opera dentro de mim, a todo vapor, já há muito tempo. A expectativa em tirar os sonhos da gaveta é grande, mas grande também é a falta que vou sentir do que fica. E a dor de ter certeza de que a minha falta vai passar tão batida. Mas, que isso importa? Cresci. Três pessoas se manifestaram, e é um bom número. A vocês, minha gratidão – não calculam o bem que me fizeram. Aos outros, também agradeço, posto que me impulsionam mais rápido e mais longe de encontro ao meu horizonte. Saio do teatro para começar a viver a arte! Já ouço a plateia inquieta, clamando pelo início do espetáculo. Vai, Cintia, ser guache na vida! Plena, matizada, barulhenta, expansiva, criadora, inquieta, faladeira! Vai, ser você mesma de novo, sem temores, sem amarras, viver o espetáculo que a vida te oferece, se entregar a seus amores, chega desse ensaio geral.

Terceiro sinal.

MERDA!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

ACERTO DE CONTAS

Nessa vida, o que é que vale: os amigos que fiz? Os que ficaram pelo caminho? Os inimigos que descobri? A família que me dei?

CIRCUNFLEXA

Não é que eu abra mão da minha vida para criar; é precisamente porque a vida abre mão de mim que me refugio na minha arte.

Aprendi que não dá pra correr pra alguém quando a vida dói. Então, corro para meus livros. Quando leio Fernando Pessoa, a vida fica um pouco mais fácil. Não que ele me faça sentir-me normal; Fernando Pessoa me faz sentir que posso até ser maluca, mas não estou sozinha no mundo.

Preciso escrever como quem precisa de ar: sempre, continuamente, a cada momento e o tempo todo. Escrevo pensando, lametado por não haver meio de concretizar as palavras que deslizam velozes no papel do meu pensamento.

Sou escritora antes de ser falante, antes de ser andante. Só penso porque escrevo. É assim que me passo a limpo, ordeno meus objetos indiretos e sujeitos indeterminados. Não escrevo porque gosto, mas porque meus artigos são imperativos em sair e ganhar as páginas diárias dessa edição da minha vida. Desnudo-me; cada palavra que cai no papel é uma peça de roupa atirada ao chão. E estou infinitamente vestida, e por mais agasalhada que minha alma estrangeira esteja, ela ainda sente frio.

Faço análises e análises morfossintáticas para dar sentido à minha composição de mim, mas minha pontuação me parece sempre inadequada. Todas as palavras que eu queria dizer, só sei dizer escrevendo. E tudo me parece que já foi escrito antes de mim, tudo o que eu queria dizer já foi dito, escrito, datilografado, impresso, digitado. Ainda assim preciso recortar as palavras e recolá-las, em ordens inversas e vozes ativas e passivas. Tivesse vivido em 1900 e seria feliz, pois já não estaria neste mudo de prolixidade que me rodeia e que nunca é o bastante.

Minhas frases não se pretedem belas, apenas precisam sair ou me afogarão. Cada palavra é uma lágrima: me limpa os olhos, embaça minha visão para purificá-la depois, e pode ser de raiva, tristeza, alegria. Cada frase é um copo d'água que bebo em meio a soluços, acalmando meu turbilhão de preposições e complementos verbais e nominais. Ai! Se eu ao menos pudesse achar um verbo de ligação...

(...E agora, vêm me dizer que verbo de ligação nem existe... Estou perdida!)

(03/11/2001 e 2008)

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

DESEJO DA CARNE

Trago comigo desde sempre um desejo de morte, entranhado na carne, correndo no sangue, pra lá dos confins de mim.

E é por isso que me agarro à vida com todo o meu ser, e experimento tudo, e em tudo me encontro. Tudo me fascina e tento conciliar o inconciliável, e aproximar os opostos, e saciar todas as vontades. Me entrego ao desejo irreprimível de ser tudo, ter tudo, tentar tudo, e sempre começar de novo do ponto onde jamais estive, mas que sempre visei do outro lado do abismo, do outro lado do espelho.

Acho que é para isso que sou atriz; para viver em uma só encarnação o gozo e a dor de setenta existências.

Não há nada que eu seja de verdade. Não há nada que eu seja por inteiro. Tudo o que sou, sou pela metade.

(26/04/2006 e 13/04/2005)

DE CARA LIMPA

A verdadeira face do palhaço é sua máscara. Seu rosto nu é sua face falsa, a que ele veste para enganar a vida e torná-la suportável. O insondável, o humano, o bestial, o divino, o desconhecido de cada um é o que se reflete no rosto daqueles que têm a coragem de se assumir palhaços.

Palhaço não é simplesmente aquele que faz rir – é, sobretudo, aquele que chora. Não é apenas aquele que encanta as plateias, mas aquele que se encanta com a imensa plateia do circo da vida. Cada um tem um palhaço dentro de si. Os tolos são aqueles que o negam. Os sábios, aqueles que o aceitam. Iluminados são os que o vivem.

A maquiagem do palhaço nada mais é do que seu rosto, depois de limpo da tinta que o cobria.

domingo, 22 de agosto de 2010

AO VENTO

Como somos frágeis... Podemos ser trespassados facilmente por uma bala perdida ou uma palavra maldita. Ambas fazem um estrago desproporcional a seu tamanho diminuto. Ambas nos arrancam sangue e lágrimas. Ambas não têm volta.

INELUTÁVEL

Amo-te. Do café ao sonho, impreterivelmente. Sem desespero e sem lacunas. Com a certeza das coisas inelutáveis; certo como o sol se pôr no oeste. Amo finalmente sem adiamentos, sem resistência, sem dúvida; e é você. Só você que na vida vai comigo agora, como música. Amo-te com os dons que tens, e os que não tens, com todos os tons de vermelho que isso me possa trazer.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

ROSA DOS VENTOS

E eis que, de repente, tudo se ressignifica.

Tudo é relativizado pelo cruzamento de nossos caminhos. E, quando não posso ver a estrada à frente, após a curva; quando choveu demais e o barranco desmoronou; quando os buracos no asfalto quebram o eixo do meu coração, nem assim me encontro mais sem direção. Pois você me guia como um gps, me orientando na rota exata da certeza do amor pleno, além da paixão embriagada; me conduzindo para nosso futuro (assim mesmo, no singular), que sempre esteve ali, ainda que oculto pelo nevoeiro. Você faz tudo ficar mais fácil: farol de neblina, computador de bordo, aquecedor. Você é a minha chegada no fim de todas as corridas, de todas as largadas; o ponto final de todas as minhas linhas. É a certeza de que nada que me doa, retarde, engarrafe é assim tão importante, pois em relação a você meu movimento é sempre retilíneo uniforme.

sábado, 21 de novembro de 2009

TÍMPANOS

Tenho um tímpano nos ouvidos, pronto a me estourar os tímpanos.

Meu coração saiu do seu recuo da bateria e agora, além do peito, ocupa toda a minha garganta, meus seios nasais, o canal auditivo e as têmporas. Bate como um surdo, alheio ao incômodo que causa aos que ouvem, berrando para toda a bateria que é hora do desfile. O som grave bem marcado combina mais com o novo sambenredo, mais do que o choro do cavaco e o lamento da cuíca. Ele repercute por todo o meu corpo, se espraiando, acordando os tamborins e os sinos de vento que dormiam mudos e empoeirados.
 
Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum-tum-tum-tum.

REVIRÃO

E eis que, de repente, dou de frente com o definitivo da vida. Entendo finalmente a frase "o começo do fim da nossa vida". Pois o fim começa aqui, inexoravelmente. Este é o ponto da virada, quando toda uma nova paisagem se descortina além da montanha.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

TAQUICARDIA

E então, outro ciclo se cumpre, fatal e implacável. Fecha-se meu ano, fecham-se (mais) feridas, trancam-se portas. Jogo fora depressa a chave, para não cair em tentação. Fecho as portas e abro a janela, para que o sol me veja... E a ele me mostro toda, lângida, devassa, deixando que ele me desnude roupa por roupa, me limpando do mergulho que dei, de boa vontade, na fria escuridão. (De boa vontade, mas já chega.) A ele mostro o peito aberto, para que o sol me queime e nele eu me consuma – no calor do sol ou no calor que o frio na boca do estômago me provoca no rosto, na espinha, no ventre, no sexo. Leves tremores de terra. As borboletas no meu estômago provocam sete ponto quatro na escala richter, e ao soterramento me abandono, embriagada e entorpecida pelo desejo que (me) acorda depois de sufocado por nove metros de inundação.

Já escrevi melhor. Mas há muito tempo não me sentia tão bem.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

PICADEIRO (criar raiz e se arrancar)

Chego ao novo palco. Tudo me parece estranho: as cadeiras, o teto, a engrenagem complicada pra descer as varas... As cores... Tudo me parece desconfortável, e pouco depois de constatar isso percebo que o motivo é o vício. Estou viciada ao meu espaço, arraigada, entranhada como raiz de jequitibá. Que triste... Por isso tudo me parece hostil. Sinal de que estou velha. Mas, sacudo as teias de aranha e me atiro à nova ribalta como se fosse algo comum, como se nada fosse novo, como se meus quinze anos de palco – do mesmo palco – valessem alguma coisa. E começa a função. E sobe o teto. E estica a lona. Estou finalmente parada sobre o disco bege, cheiro doce e antigo, e sob o hexagrama treliçado de luz, sisal, poeira, suor e madeira. Tudo agora me é estranhamente familiar. Quase posso ver as mesmas cadeiras, as mesmas varas, o mesmo espaço vazio e ancho... As mesmas pessoas. E finalmente entendo como os mambembes dos circos de todos os mundos conseguem viver sem pouso fixo: aqui, sob meu teto, pisando firme meu chão, estou novamente – e sempre – em casa.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ANÁLISE COMBINATÓRIA

Dentre os milhares de eus possíveis, eis que escolho ser todos. Abrigo os eus possíveis e os impensáveis, os verossímeis e os inventados, e a resultante é que sou esta versão de quem sou; esta que fala, dança, ama, ri, anda em mim, agora, nada mais é do que uma variação do mesmo tema que, por ser infinito para dentro, vaza para fora nesta versão que nunca é a final. Versão que, estando em constante rearranjo, é, não diferente de si, mas também não exatamente igual. Cubo mágico. Todas as caras podem ser a minha cara. Todos os estilos podem ser o meu, ainda que eu não seja de nenhum deles. Liberdade de ser tudo o que se é, de exprimir toda as potencialidades das possibilidades das personalidades. Liberdade.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

SENTIDOS

Não venha me dizer que você também se sente assim.

Assim como? Como você sabe? Não venha me dizer que sabe como eu me sinto. Não, você não sabe. Só eu me sinto em mim, só eu sinto o que sinto da forma que sinto. Enfim.

Minha cabeça dói, mas estou leve. A vida se renova. Aprendi finalmente a falar, falar apenas o que deve ser dito, e me calar quando necessário. Acho que é esta a sabedoria: saber quando dizer o quê.

sábado, 29 de agosto de 2009

CONTINENTES E CONTEÚDOS

A roupa que a toca está cheia dela. O espelho de prata a olha de soslaio. Ela, estranha desconhecida de si mesma, hesita quando a mão à sua frente se mexe simultaneamente à sua. Estremece. Vertigem. A taquicardia persiste. A febre não cede. Algo em seus próprios olhos lhe é familiar, como se já tivessem sido dela antes de serem dela. Há muito ela deixou de sonhar. Só delira. Ainda não sabe se isso é bom ou ruim. Frio. Há quanto tempo não chora! Há quanto tempo suas lágrimas secaram e sua solidão absurda não escorre? Não saberia mais dizer. E não há sofrimento nisso. A gravidade é que a puxa pra baixo. Meu Deus! Quando, quando, Nossinhora, ela iria pensar que não sofrer não dói?! Os dentes batem. A estranha continua espionando. Como ela vigia de dentro da sua cabeça, ela duvida desses pensamentos. Desconfia. Não está acostumada. Será que foi lavagem cerebral? Será que é definitivo? Será que é grave? Será que ela ainda é a mesma? A mesma da carteira de identidade, das três assinaturas no banco, da firma no cartório, da conta na padaria? Ainda é a mesma dos trinta e sete porta-retratos espalhados pela casa, olhando todos de soslaio (soslaio, adoro essa palavra, soslaio. Soslaio. Soslaio. Repito-a até ela perder o sentido. Soslaio.). Ela olha de soslaio de dentro dela mesma e se esgueira de viés. Resolve sair de fininho antes que fique louca.

ANTI RESÍDUOS

SHAMPOO ANTI RESÍDUOS
LIMPA PROFUNDAMENTE, REMOVENDO AS IMPUREZAS DOS FIOS


Queria era um xampu que removesse os resíduos da sua alma.

Enche a mão com o xampu e esfrega o couro cabeludo. Esfrega, esfrega energicamente as pontas dos dedos na pele da cabeça, na esperança de que o produto lhe entre pelos poros e limpe profundamente as suas lembranças.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

UTILIDADES DOMÉSTICAS

Talvez seja só pra isso que eu esteja aqui: pra dar pezinho pros outros.

Pra fazer escada, minitrampolim, pra que os outros pisem, pulem, se impulsionem e saltem. Aquela de que todos precisam, aquela que é necessária, nunca querida; que é imprescindível, mas nunca lembrada quando nada falta. Talvez eu faça parte do universo das coisas úteis, alicate na maleta de ferramentas, e só. Talvez eu paire no canto da memória de todos como o durex que se esqueceu de comprar, o superbonder conservado na geladeira, o estepe na mala do carro, aquilo que deve estar ao alcance da mão quando preciso, mas não precisa se manter no campo de visão de ninguém. Talvez sim.

Mas minha alma anseia pela esfera das coisas belas, das coisas doces, das coisas inúteis; de tudo o que não é necessário e por isso tão desejado, como a música, como o arcoiris no fim da tempestade, como o balé, como o teatro, como os livros de ficção. Não, nada disso é necessário, e no entanto minha alma secaria antes de me chegar aos olhos se não tivesse sempre uma boa dose de tudo isso... Não como uma planta definha sem sol, mas como um gato que passa seus dias numa casa sem tapetes, almofadas e novelos de lã... Como um prato de mingau de fubá sem sal.

É chato ser útil. Queria ser totalmente desnecessária. Sair da estante dos eletrodomésticos, das ferramentas, dos equipamentos, das mileuma coisas úteis que as pessoas inventaram para que outras pessoas pensassem que tudo aquilo é imprescindível. Não sou imprescindível, e isso me fica claro dia após dia. Todos fazem questão de me carimbar isso na pele, bem entendido. Alguém tem que fazer o serviço sujo. Alguém tem que fazer o serviço. Alguém tem que fazer o que qualquer um poderia ter feito, mas ninguém nunca faz. Alguém tem que levar a bronca, ouvir a cobrança, alguém tem que ficar olhando as crianças enquanto o casal vai pro cinema.

Tudo isso me aperta a garganta, mas de dentro, como se uma corda me fosse passada ao contrário, tentando explodi-la em vez de estrangulá-la. Tudo isso me machuca como aquele pedregulho que entrou entre o dedo anular e o mínimo do pé, dentro da meia justa no tênis apertado: roça, roça, roça, irrita, fere, mas sem sangrar de fato, sem nunca precisar dar ponto.

Há alguém no mundo que me olhe com outros olhos?

terça-feira, 21 de julho de 2009

WHAT A CLICHÉ...

Tenho pensado em ir embora...

Será que é possível? Como nos filmes, ter uma segunda chance, começar de novo, lá do princípio? Deixar pra trás tudo o que se foi, o que se fez, o que se quis... Deixar pra trás todas as relações utilitárias, os sonhos sufocados, as esperanças esvaídas, os projetos paralisados, como quem lança uma roupa enxovalhada no cesto e tira nova calcinha da gaveta; como quem começa uma folha nova deixar seus rejeitos, seus complexos, seus trejeitos – começar num novo lugar a ser uma pessoa nova? Deixar de ser aquela a quem todos usam e, como nos filmes, passar a ser aquela a que todos almejam, por ser nova? Não só nova naquele lugar, mas porque quando se muda de lugar se passa, de fato, a ser uma nova pessoa... É possível?

E, mais que isso, a verdadeira pergunta, aquela que me angustia no âmago, que está no cerne de todos os medos: será que eu teria força suficiente para tanto, para tal feito? Será uma questão de coragem? Será mera covardia?

E para onde ir? Em qual dos infinitos pontos no googlemaps espera o meu futuro? Por que fui nascer precisamente aqui? Porque fui nascer precisamente aqui, é aqui que preciso ficar? Ou essa imprecisão de meu navegar me é intrínseca, e implica sempre em desbravar mais e mais mares de morros, dentro e fora de mim? Será que depois de um tempo nessa nova coordenada eu ansiaria por novas latitude-longitude, e meu coração-gps me lançaria de novo no caos, me enviaria por um novo itinerário a um novo cais?

Quantos trópicos preciso cruzar dentro de mim para fazer novo meu lugar, para me fazer nova neste mesmo lugar? Quantos graus preciso deslocar, e em que sentido? Que sentido tem ficar? Que sentido tem partir, meu Deus? O que me aguarda depois da próxima curva?

Tudo pra trás, todos pra trás, tudo o que se foi, que se fez, que se quis; tudo o que foi ruim e o que foi bom, como quem tira uma pele por inteiro, exoesqueleto de mágoas, rejeições e mitos; será que dá?

Isso tá horrível, eu sei. Nada inspirada. Apenas precisando gritar, como sempre; mais do mesmo. Nada de novo debaixo do sol.

terça-feira, 5 de maio de 2009

PFFFFF...

Quero escrever, há dias que quero escrever. Há coisas aqui dentro que precisam do exorcismo da tela branca e das palavras pontuadas, uma a uma, ao som tlec tlec tlec. Mas tudo quanto penso me vai como me veio, tudo tão fugaz... E se não consigo fugir, tampouco consigo escrever. E é isto o que escrevo, para não murchar como balão de festa de ontem.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

...e se eu for o primeiro a prever e poder desistir do que for dar errado?

Há algo dentro de mim que quer sair pelos olhos e pela boca, transbordar num choro tranquilo ou num canto infinito, e no entanto não sai. É freado por não sei que medo de ser feliz com o pouco que tenho, com o pouco que me sobrou e que, no entanto, é tão mais que o que sempre tive... Medo de descobrir que a felicidade é simples, cotidiana e corriqueira, feita de pequenos pedaços daquilo que é possível fazer com a vida que a vida nos dá dia após dia, e não aquele ouro impossível que está no inatingível futuro inexistente, sempre no fim do arcoíris, aquele ouro perfeito e etéreo que está sempre fugindo das nossa mãos. E que me ensiaram a perseguir obstinadamente.

O futuro é uma ilusão. Só existe o agora.

A felicidade não é um perfeito estado de graça, em que flutuamos continuamente em vez de andar, com a vida se afigurando numa arbórea, constante, retilínea e perfeita estrada cor-de-rosa – é o que descubro pouco a pouco, pasma e perplexa à medida em que avança minha história. Começo por fim a perceber que a felicidade é uma colcha de retalhos, cheia de detalhes cinzas e insignificantes, pespontos, nós aparentes, trocas de linha no meio da trama; cheia de lágrimas que dão o brilho aos sorrisos que se seguem, continuamente; cheia de dia-a-dia... E por isso é bela, possível e presente.

O futuro é uma abstração.

Não tenho me reconhecido. Não me identifico mais nas minhas ações mais refletidas, nas minhas reações menos destemperadas, no perdão que aprendi a conceder. Me desconheço e aprendo a me re-conhecer, nova e ainda a mesma de sempre, renascida, re-renascida e novamente re-renascida.

Hoje, tenho a mim. Plena, inteira porque feita de retalhos. E começo a achar que o meu todo é mais que a mera soma das minhas partes.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

'CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO'

Bebi, confesso.

Bebi muito.

Bebi tudo.

Bebi até ficar lúcida. E encarei – de frente, de costas, de lado, de viés – tudo aquilo o que dói em mim. E só vi você. Vi você de frente, de perfil, de cima, de baixo. Vi você de mocinho, de bandido, de galã, de assassino da minha paz, da minha tranquilidade. Não você, propriamente, mas a falta que você deixou no seu lugar, me fazendo companhia nas noites de frio, nas noites de sexta, nas noites de lua, nas noites de insônia. Sua falta me assassina. Sua falta me dói como um atropelamento. Fraturas múltiplas, hemorragia interna e parada cardíaca. Sua falta me dói como um infarto.

Só um tratamento me traz de volta à vida: sua vinda. Sua volta. Sua visão, sua imagem, você inteiro pra mim, em mim, em mim.

Meu juízo sai pra passear todas as vezes que a sua lembrança me bate à porta. Quando sua ausência me visita, sirvo a ela lágrimas quentes com um toque amargo, suspiros de moça e espetinhos de coração. Sirvo-te rins, fígado, língua – trocando em miúdos, o que sobra de mim depois da dor que me dilacera me fazer em postas, temperar com sal e cozinhar em banhomaria.

Será que ainda te sirvo? Será que dizer teamo ainda serve de alguma coisa? É possível, ainda, ser feliz, ou é um plano que terei que adiar para a próxima encarnação?

Acho que a felicidade de te ter está fechada a vácuo, num saco plástico, dentro do freezer. Prazo de validade indeterminado.

PONTO FINAL

Sim, cruel, pode até ser. Dura. Fria? Espero que sim, na verdade; é algo que levei anos para conquistar. Mas nunca poderei ser acusada de desleal ou injusta. Ainda que eu me roa, ainda que me doa, ainda que me dobre: mantive a lealdade, ainda que não a mim, e este é meu dilema. Se você estivesse no meu lugar, como agiria? Fácil falar, não é? Facílimo falar sem jamais se colocar no lugar do outro. Com os meus óculos de grau, como você veria o mundo? Como você se veria se tivesse meus olhos, meu cérebro, minhas entranhas? Se as lágrimas que contive, abafadas pela injustiça que me foi feita, escorressem por dentro em você, em vez de mim, o que você faria diferente? Seria alguém melhor do que eu sou agora? Sou quem pude ser, faço o que posso a cada momento sem deixar de ser quem me fiz e me faço a duras penas a cada sol, fiel à essência de meus valores, meus dois valores, mais que qualquer outros.

Acho estranho, de fato, acho. Amizades se fazem, se vão, são como vento. Acho estranhíssimo. "Seja o vosso sim, sim; e o vosso não, não". Difícil lidar com esse mundo de hoje, quando um "sim" quer dizer "às vezes"; e um "não", "quem sabe?".

Cansada de só fazer o errado, aos olhos dos outros, toda vez que faço o mais certo possível para que os danos de toods sejam, ao menos, minimizados. Porque não existe escolha sem dano, nessas situações. E quem ficou danado? E quem deveria ficar? O que está errado, afinal: o erro menor entre os que podiam ser escolhidos, de danos menos extensos, já que não há como escapar ileso; ou os olhos dos que me vigiam, e os dedos acusadores dos que me julgam?

E que amigos são esses os que me ouviram só para me contar? São puros e imaculados como os dedos de Deus? É isso, acaso, a lealdade? Vírgula.

Não quero mais viver no meio disso, no meio dessa gente que não se respeita, que não me respeita, que me conta e me espalha no ventilador. Deslealdade. Injustiça. E eu, que tanto me esfolo pensando em não jogar as palavras dos outros no vento... Que recebo? Dedos acusadores, "porque você é isso, porque você é aquilo, não olho na sua cara porque fulaninho disse isso, porque me disseram não-sei-que mas não posso dizer o santo..." Antes pusesse todos no fogo, ardessem e se purificassem na fogueira de suas vaidades humanas, instintos animais. Não quero mais ser conivente com nada disso, visto que um abismo nos separa. Eu vim de algum lugar fora da estratosfera, e de hoje em diante só vou agir de acordo com os meus.

"Felizes aqueles que nada têm, pois nada lhes pode ser tirado nem diminuido".

quinta-feira, 2 de abril de 2009

AINDA EM CONSTRUÇÃO

Trago dentro em mim uma memória ancestral que não sei de onde. Trago aqui as lembranças das coias todas, 237 eras entranhadas nos poros da minhalma.

Lembro o gosto amargo de sal na boca das mulheres que perderam seus maridos para o mar tenebroso, entregues ambos à tormenta. Lembro (...)

Tudo o que dói neste mundo dói em mim. E o doer não me pesa; antes me liberta, pois é a certeza de que a dor não é a exceção, e isso faz de mim alguém mais plausível do que seria caso não me doesse.

Tenho as letras de todos os poemas perdidos aqui dentro... Ecoam, desconexas, perdidas umas das outras e de mim, em um emaranhado de frases soltas e palavras sem sentido que, às vezes, me escapam pelos olhos.

LIÇÕES

É melhor começar a aprender o que a vida quer lhe ensinar. Repetir de ano é muito ruim. Se não se aprende por bem, se aprende por mal.
Se tudo fosse tão simples como ser ou não ser...

Ser, não ser. Ser, deixar de ser. Não ser e querer ser. Ser, deixar de ser sem querer deixar de ser, voltar a ser. Precisar ser e não querer. Precisar ser e não poder. Ser e não querer ser, deixar de querer ser, não ser. Ser, deixar de ser e voltar a ser daí a três encarnações. Eis as questões.

sexta-feira, 27 de março de 2009

VEM, VAMOS ALÉM QUE A VIDA É PASSAGEIRA

Quase não penso mais em você.

O ruim é que, quando penso, o vazio que lateja no meu peito, no meu corpo, na minha alma inteira, é tamanho, que nada nunca o preenche. Minha garganta dói a sua ausência, meu corpo inteiro te reclama, te exige, te demanda, te grita, e minha garganta dói.

Não penso em você de propósito.

Mas a vida parece querer empurrar meu olhar pra você, sempre, sempre, de uma forma ou de outra. No show que passa na tevê. Na música que alguém toca numa balada qualquer. Na bebida que me oferecem, na cantada que me passam, no cabelo que elogiam...

Meu Deus, meu Deus, que buraco é esse? Que cicatriz é essa que nada nunca tampa, nada nunca cura, nada nunca, nada, nunca nada... Cadê você, quando é que você vem, quando é que você vem de vez pra mim, pra devolver tudo o que você me roubou, minha paz, meus dias iguais, o rosto seco, o desconhecimento de tantas infinitas coisas... Quando penso que te esqueci, me vem a vida ou sei lá que diabos, me empurrando qualquer coisa que cheira a você, rescende a você, e tudo isso me dói, me dói, me dói...

São flashes do seu sorriso, são pequenos trejeitos, são gírias que me pego falando. Matam mais que uma punhalada nas costas.

Sua falta de palavras me rasga, não simplesmente quando elas me faltam, mas quando elas vêm, poucas, escassas, frias, distantes como você agora. Tão diferentes das palavras-ondas-sonoras que você me dirige quando está aqui, ao meu alcance, ao alcance dos meus beijos, dos meus braços, dos meus lençóis...

Que merda, que merda, que merda. Isso é tudo. Que merda. Queria não te querer assim, mas quando sua falta bate, não bate: me espanca. Me chicoteia. Me tortura. Sua falta me agride. Sua falta me fere, gera lesões corporais, e nem posso te processar por perdas e danos, porque não há mão aqui, nem a me bater, nem a me acalentar.

Ainda estou nas suas mãos. Será que você sabe?

E que sentido tem isto tudo? Meu Deus, meu Deus, meu Deus, por que é que tudo isso não acaba logo? Que mal fiz eu aos deuses todos? Quando é que eu vou voltar pra casa?

Sua falta se deita comigo todas as noites. Sua falta me sufoca, me tira o ar, me dá asma. Sua falta é a sensação de que eu, permanentemente, estou esquecendo alguma coisa. Sua falta me esgana, me enforca, me estremece dum jeito que eu me olho e penso não sou eu, essa não sou eu. Essa que eu sou não é quem eu era, eu me quero de volta, eu preciso que você volte.

Queria que não fosse eu, mas sou o que fizemos de mim, o que pude fazer agora que você se foi; o que a vida fez de mim, o que pude fazer com o que sobrou. Quero te ter a metro, não a retalho, Deus, olha pra isso, olha pra mim e tem dó, tem dó, mais que justiça, força ou coisa que o valha, agora preciso da sua piedade, senhor, antes que eu me afogue, me afogueie, me atole, me alheie de todo o resto, meu Deus, meu Deus, meu Deus.

quarta-feira, 11 de março de 2009

IMAGEM A RETALHO

O espelho se fragmenta ante a ação bruta e repetida da escova de cabelos.

Milhões de faces do inimigo me olham agora, iradas, cintilantes, cruéis e implacáveis.

Nosso vermelho se espalha pelo chão.

Dou-lhes as costas e delas renasço, ascendente, esvoaçante e rica.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Ela era uma figura.

Uma figura difícil, sem dúvida.

A figurinha mais difícil de qualquer coleção.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

PARA QUANDO O TEMPO SUPRIMIR MINHA PRESENÇA NESTA TERRA

Quando eu me for, considerem este rabisco o meu testamento.

Acalmem-se, acalmem-se todos!

(Digo isto mais por efeito retórico que por sentir protestos efusivos quanto à minha partida.)

(Não que não aconteçam; tudo é possível neste mundo de meu Deus; mas se tem uma coisa que esses vinte e oito anos conseguiram me ensinar, foi: manter os dois pés no chão.)

Não é que eu pretenda voltar pra casa por agora, mas deixo registradas estas palavras, não necessariamente minhas últimas, não necessariamente meu último desejo. Apenas mais algumas palavras.



Minhas fotos, deixem com meus pais, para que cada imagem possa me trazer à lembrança quando meus contornos começarem a sumir de suas mentes – porque, não se iludam, mesmo da mente dos pais, um dia nossos rostos desbotam, e é bom que desbotem... Deixem com eles as fotos que bati e aquelas em que apareço - ainda não sei qual das duas capturou melhor minha alma.

Minhas roupas, doem. Doem tudo: sapatos, saias, bijuterias, agasalhos, tênis, roupas de ensaio (toda a infinidade delas), tudo o mais que puder ser doado. Doem para quem precisa mais que vocês, a quem tentei chegar perto na vida e por covardia, por omissão, por egoísmo, por falta de tempo, nunca cheguei o quanto deveria. Mesmo quando o mundo doía em mim, e o remédio é buscar aqueles que sofrem mais que nós, nunca os alcancei, nunca os busquei de fato - que minhas roupas os alcancem e aqueçam.

Meus escritos, publiquem. Ficarei feliz, onde estiver; pensem assim se os consola. Assim se lembrarão de mim por minha obra, não por esse ser eternamente errante, constantemente incompleto, persistentemente imperfeito. Publiquem meus escritos, uma vez que meu teatro morre a cada vez que fecha o pano, obra fugaz, criação evanescente. Publiquem-me, para que o verbo se faça carne, e eu alcance o infinito.

Minha gata, cuidem. Acendam a luz do banheiro para que ela coma a ração. Nunca ponham demais, porque ela não come ração velha. Troquem a água todos os dias, sempre na vasilha vermelha (ela só bebe nela). Abram a janela às quatro da manhã: ela sempre dá uma voltinha por esse horário. Fiquem tranquilos; ela os lembrará de tudo isso. Gatos são leais. Quando ela deitar na ponta da cama, ou sobre seus pés, agradeçam. Vocês podem nunca saber o valor disso, mas tenham certeza: houve dias em que isso fez toda a diferença entre achar que estou sozinha neste planeta, e ter certeza.

Meu quarto, meus pequenos bens: dispersem. Dêem de presente. Rifem. Façam um bazar. Embrulhem e dêem. Doem-me. Façam minha energia circular; eis a única maneira de me reter. Por mais tempo que eu tenha dedicado a me registrar no meu quarto nesta terra, na cor de suas paredes, nas lantejoulas das almofadas, no brilho das contas em cada canto do quarto, em cada detalhe que me imprime naquele lugar, estejam certos: depois que eu me for, nada disso me terá importância.

E, finalmente, meus textos de teatro: queimem. Queimem tudo, apesar de ecologicamente incorreto. Pois só pelo fogo, cremação, combustão completa (pena que não expontânea, caso em que eu seria mais feliz), os fragmentos da minha alma poderão se reunir a mim no ar, no éter, redenção plena e derradeira, e me completar. Cada personagem que passou por mim levou parte do que fui de nascença, e eis a única maneira de me restituir minha completude, ainda que em morte.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

"Je me coryais riche d'une fleur unique, e je ne possède qu'une rose ordinaire"

A que são todos capazes... Todos, meu Deus, todos! Mentiras, omissões, desconsideração... Deslealdade. E não dói menos em mim pela deslealdade não ser comigo. Me dói olhar a deslealdade com qualquer criatura. Eis a única coisa que não tolero, e não sei se isso é bom ou ruim. O fato é que não desejo ser de outra forma. Se me flexibilizar neste sentido significa ser como eles, ser um deles... Prefiro ser inflexível como um paredão de rocha. Machadinhas e balança, justiça e lealdade, pai Xangô a me guiar.

Meu senso de lealdade só é comparável ao de um mafioso siciliano: se você mantiver a sua palavra, eu manterei a minha. Até debaixo de uma saraivada de balas.

Inacreditável o quanto nos enganamos com aqueles a quem amamos - e que achamos que nos amam. Impossível amar e ser desleal ao mesmo tempo...

E eis que descubro aquilo que pode fazer de mim, criatura apaixonada, entusiasta e desmedida por excelência, a mais fria das criaturas, coração de gelo, indiferente a qualquer apelo ou argumento.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

AGORA É QUE SÃO ELAS

Começo a entender porque me dedico tanto a Ela, a todas Elas, cuja gestação é longa, às vezes mais de ano, e a existência, breve. Aquelas que vivem em mim por poucas horas por semana, durante uma curta temporada num teatro qualquer. Dedico a Elas, todas, um amor sem medidas ou cobranças, uma devoção absoluta e neurótica, uma doação irrestrita e ofegante. Avassaladoras, todas elas, me tomam de um só golpe, sempre, e depois passam meses me provocando, flertando comigo, até que se decidam a descer por completo e usar meu corpo, minhas mãos, meus olhares, minha voz para que seu verbo se faça carne em mim...

Dedico-me a elas porque tenho fome.

Dedico-me, e me debruço, e me consumo, frente à irresistível tentação de esquecer-me de quem sou, e sê-las. Porque preciso criar. Porque, se não criar, eu me destruo. Porque, se eu não for todas elas, eu deixarei, fatalmente, de ser – não só eu, mas qualquer outra. Porque uma vida me é pouca para ser tudo o que há dentro em mim, e a ideia não ser me dói às raias do insuportável.

Dedico-me a elas, todas, à Joana, à Charlotte, à Elisa, porque tenho sede.

Ser quem sou nunca me basta. Porque sou qualquer coisa entre o que sonhei ser e o que fiz de mim. Nesse meio de caminho, estão Elas, todas elas, que são e serão sempre aquelas que eu poderia ser, caso... Se... Não fosse...

E, afinal, elas não são feitas do ar à minha volta: são feitas da minha carne, da massa das minhas ideias e do fermento da minha emoção. São feitas da minha poesia, das imagens que trago em mim, dos desejos que eu nem sabia que tinha, dos nós das minhas entranhas, da beleza adormecida, da angústia insone, da razão que às vezes cochila.

Acho que, quando sou delas, sou mais minha. Quando me regozijo com seus prazeres e glórias, preencho as lacunas que me dei. Quando vivo a dor de cada uma, banhada em luz, limpo-me da minha própria angústia. São dores boas de se viver: acabam-se quando apaga a luz e cai o pano. Descubro o Brasil a cada vez que a cortina se abre. Um novo continente por temporada.

Elas estão contidas em mim, presas, sufocadas. Quando sou delas, sou de alguém: sou de quem me possui, cativa; o que me tapa os buracos que me deixo. Elas só existem porque eu existo. Porque, não fosse eu, elas não seriam exatamente quem são: teriam o mesmo pai, é fato: o dramaturgo, mas não a mesma mãe, não o mesmo ventre. Elas são a criação; eu, a criadora. Embora elas me arrebatem, e me dominem, e me exijam. E é bom que o façam: sinto que sou importante na "vida" de alguém. Acho que só assim.

Dedico-me a elas porque não tenho ninguém por mim.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ELA-ELISA ou CLAVE DE LUA

(Para aquela que não sou e preciso ser, Elisa, ser de vento e música, alma sem corpo que perambula por sobre os textos, por sobre os palcos, e tenta baixar em meu corpo ainda recheado de mim, incorporar, e sempre evapora antes que eu a apanhe no ar. Pour Elise, minha personagem em "As Bruxas de Salém").


Elisa,

eu, do lado de cá da máscara, me observo em ti. Continuamente me observo em ti, e te pergunto:

Que parte de mim tu és?
Que parte de mim é esse eclipse, névoas, crepúsculos?
Que parte de mim alimentará teus olhos grandes e sonoros, tuas mãos pequenas e nervosas, tua garganta seca, boca amarga, coração duro? Tua frieza de mármore? Tua falta de lágrimas?

E tu, insensível, com o que me respondes?

Um sutilíssimo sorriso. Delicadeza. Silêncio.

Em que semínimas e colcheias tu te escondes?
Em que pausas?
Em que pautas?
Em que pautas tua dignidade de prata quando a clava da justiça esmorece sob o sol?

Pontua. Pontua. Pontua. Colcheias... Elisa-colcheia, meio tempo, meia lua. Contida por excelência, calada pela metade, amarga por inteiro.

Flutua, flutuuuuuuuuua entre legattos e stacattos, música ligadura de união, silêncio ligadura de expressão...

Tu não me respondes, e nessa tua resposta feita de mudez, melodia e olhos sem sal, mostras que a resposta está dentro em mim.

Mais que as notas, tu és as pausas, figuras negativas. Silêncios.

Elisa, minha querida, minha cara indecisa...

Eu, que sou um ser de palavras, emudeço diante de teu silêncio... Para falar a ti pego emprestadas as palavras do Baleiro:

Vem comigo, vem
Já tenho quase tudo que me basta
A flor no pasto
A mesa posta
Minha música e teu (?) calor
Agora só me falta aprender o silêncio.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

SENSAÇÕES

Trinta e seis graus. À sombra.

O suor, lenta mas continuamente, poreja; primeiro imperceptível; depois formando gotículas, gotas, até que escorrem. O sangue lateja nas têmporas. O rosto afogueado queima, arde em brasa. O cabelo, longo, lhe abafa as costas. Toda ela está quente, como um ferro de passar roupa que esqueceram ligado tempo demais.

Ela gira a torneira e põe os dedos curtos debaixo d'água gelada. Depois a mão. Depois o braço. O ombro. As pernas, o tronco, o rosto, a nuca. A água escorre feito metal pescoço abaixo, cabelo abaixo, corpo abaixo. A respiração presa pelo frio cortante do desligado do chuveiro, o rosto perdendo a cor de fogo, o sangue serenando nas veias, o peito refrescado pela vida líquida e gelada, que desce pelo ventre, pelo sexo, pelas pernas, pelos pés – isso é tudo o que preenche seu cérebro, e ela é só pele. Hortelã. Eternidade.

MEMÓRIA ALTERADA

Uma da manhã. Não há mais o que procurar nos links e sites. Ninguém pra teclar. Os olhos quase se fecham, a garganta dói, mas ela persevera. Espera pelo quê? Esperar, esperar... O contínuo esperar.

Sua cama a espera.

Ela espera que a felicidade a encontre amanhã. Já ao acordar. Hoje, seus dedos ainda procuram. E ela continua a esperar.

Será que ela sabe que a felicidade não existe? Que é só uma ilusão? Que a felicidade é algo inventado pelos seres humanos pra tornar a vida possível?

A felicidade só é possível no passado. É uma memória alterada. Fomos felizes porque ensinamos nossa memória que fomos felizes.

Mas ela ignora tal fato, e é feliz por isso.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Ela folheou bastante o caderno novo, escolhendo entre suas páginas iguais e igualmente vazias; se decidiu pela que lhe pareceu mais convidativa, e se pôs a derramar suas palavras no papel – iniciou seus relatos.
O que ela é?

Qualquer coisa entre o que sonhou ser e o que fez de si.

YIN E YANG

Há dias em que ela é o demais. O poluído. O over. O barroco. O exagerado. A personificação do kitsch. Tudo o que houver de carregado, de muito, de tudo.

Mas há dias em que ela é o silêncio molhado que sucede o céu desabado. Arcoíris e terra molhada. Alma lavada e verde sobre a grama.
E, afinal, chegando ao fim de seus esforços, ao fim de seus trabalhos, ao fim de suas metas, ela descobre que o fim é uma ilusão.

O fim, como o passado, é uma ilusão. Não existe senão o presente.

Tudo é espiral, tudo é recomeço, o tempo dobrado sobre si mesmo e sobreposto, como um lençol de casal que sai do varal ancho pra gaveta apertada.
Ela, em pleno meio do caminho, ainda não sabe se é feita do pó da estrada ou do brinde da chegada.

E não sabe se um dia vai descobrir.

SINERGIA

Ela é um somatório ilógico do que a vida fez dela, do que seus erros fizeram dela, do que os erros dos outros fizeram dela, do que ela deixou que os outros fizessem dela, do que ela não pôde evitar que fizessem dela; mais a genética, a herança ancestral do fado português que lhe corre no sangue, tudo o que comeu até hoje, os exercícios que não praticou na infância e adolescência, e mais o que trouxe consigo dalguma vida passada; tudo isso aliado à tristeza pelo que não conseguiu fazer, ao prazer de haver sido e à frustração do não poder...

E ela ainda não sabe se esse todo é maior ou menor do que a soma das partes.

ACIDEZ

Foi sempre uma depressiva. Foi sempre noturna. Foi sempre esse pessimismo rasgado, entornado no papel; esse tom amargo que aparece estampado em marca d'água até nas palavras mais amenas. Foi sempre melancólica, entediada, sufocada pelo seu eu que só se revela pleno no papel. Foi sempre esse mal-humor pela manhã, como se o sol azedasse o gosto da vida. De manhã sempre teve essa vontade de não falar e essa incapacidade de sorrir. E foi sempre essa vontade de chorar quando colocada em companhia de si mesma. Se forçada a olhar para fora quando seus olhos se voltam pra dentro, perdida que está em suas imagens interiores, ela não responde, apenas rosna.

Foi sempre um manancial de potenciais. Sua alma tem um desejo de tudo o que lhe paralisa a ação, que a estarrece ao ver o quanto há pra se fazer nesse mundo, e o quanto uma vida é pouca.

E há o medo. Um medo enorme de, ao desembarcar desse personagem que ela se deu, descobrir que foi só potenciais.

E o que são potenciais? Se não explorados, não são nada. Jornal impresso e não lido a tempo vira banheiro de cachorro.

O tempo vai passando, cada vez mais rápido à medida em que ela fica mais lenta para acompanhá-la. Sente o peso de cada ano elevado à quinta potência agora que se afasta irremediavelmente dos vinte e poucos anos. E, espalhados seus potenciais, suas ânsias e seus desejos pelo chão, ela se senta no meio de tudo e começa a triagem: pruma caixa as coisas que quer fazer primeiro, proutra aquelas que fará um dia caso sobre tempo (ilusão, ilusão!), e prum baú grande e antigo os feitos que ficarão pruma próxima vida. Sua caixa de Pandora. Ela o lacra bem e joga-o no mar de seus desapegos, com o receio de que seus projetos preteridos escapem do baú e, sobrevoando ferozmente sua cabeça, ataquem-na como as pragas do Egito e aferroem seu peito.

Difícil é escolher o que vai para qual caixa. O que ficará pelo caminho. Difícil porque sempre há o medo de chegar ao último porto e descobrir que se trouxe a bagagem errada, casacos de frio para o Caribe. E não dá nunca para voltar rio acima.

BONECA RUSSA

Feliz a cebola, que é só cabeça. Você a desembrulha, desembrulha, desembrulha, e eis que não há nada embrulhado no miolo.

Então, era isso o que ela era? Papel-cetim sobre papel-cetim sobre papel-cetim sobre papel-cetim assim por diante, até a loucura?

E lá, no fim de tudo, o silêncio.
A tempestade que se despeja de seu cérebro imobiliza seu corpo, e as palavras evaporam de suas mãos antes mesmo de pressentidas. Ela escreve porque a vida lhe dói. A vida lhe coça. A vida lhe dá cócegas.

Ela escreve porque não sabe dançar.

DESAGUAR

Ela se perde sempre a se perguntar:

– O fim de seu barco, qual será: será o porto, ou bem o mar?

REFAZENDO PASSOS

Para além de todas as terras há sempre o mar a nos esperar. O mar que é nosso de nascença e herança, mas a quem só retornamos após nos embrenhar e nos perder por sertões e desertos e matas, por dezenas de planaltos e planícies, mas carregando sempre o marulho das marés no peito e o sal das ondas nos olhos.

A ele retornamos como se nunca dele tivéssemos saído – sempre há um kansas para retornar.

Ela o sabia. Ela bem o sabia. Ao fim de todas as esperas nos espera o encontro. Ao fim de todas as andanças nos aguarda a chegada. Ao fim de todos os passos nos acolhe o abraço. Se assim não o fosse, não valeria vagar, viajar, vaguear, voltear: só valem pelo voltar.

Sim, ela o sabia: o ir só vale pelo voltar.

AGRADECIMENTO

E, mais uma vez, aqui está ela, sozinha no fim de todas as coisas. Ela e sua gata, sua companheira certa e cínica dos momentos em que tudo o mais falha. Pede a Deus força para levar essa lição (longa lição) até o fim, por mais que o aprendizado doa. Pede força e fé no fim breve.

E agradece por ter uma gata.

Gatos são aqueles que não te abandonam, até o fim – bom, também tem os labradores, mas os gatos têm diversas vantagens: cabem num transporte de 40 centímetros, tomam banho sozinhos, se desfazem de seus excrementos sem que você nem tome conhecimento e esquentam seus pés, dormindo enrodilhados sobre eles, enquanto você seca o rosto no travesseiro.

sábado, 10 de janeiro de 2009

PONTOS NO INFINITO

Somos todos sozinhos – isso ela aprendeu a duras penas, e só depois de enternder que aquela era a lição que a vida queria lhe ensinar. Pais, amigos, filhos, namorados – tudo ilusões. Encontros são pontos no infinito. Nós somos tudo o que permanece conosco. Já disse o mestre que só nós somos sempre iguais a nós próprios. Ela agora compreendia. E a madrugada da vida se abre em manhã pálida, mas com a promessa do sol radiante por trás das nuvens.

Só não se decepciona aquele que não espera. Só vê com lucidez aquele que não deixa o coração enxergar, aquele que não deixa seu eu se embolar com os eus alheios. Aí, sim, se pode ver o todo, se pode ver tudo de todos os lados, num relance. Só esse é livre. Só é livre quem é sozinho, sem ânxias, agonias e solidões. Só é feliz quem não precisa dos outros.

Só quem não precisa do outro consegue mergulhar plenamente na alegria de estar com o outro.

VÍTREA

– O que você fez da minha vida?

Pergunta ela sem palavras à figura de olhos vítreos que a encara enclausurada na moldura do espelho.

Duas lágrimas rolam, uma quente sobre a pele, outra fria sobre a alma.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

LÁGRIMAS PASTÉIS

Ela chora. Mas dessa vez ela chora em silêncio lágrimas conscientes de que são finitas, de que há um estoque limitado de água e sal para cair. O que já é um grande passo. Chora de manso, quieta, sem barulho ou escarcéu, sem soluços ou arroubos. Chora em tons pastéis, o que indubitavelmente é um enorme passo.

Ela sabe que só chora porque a insônia, a fome e o cansaço são sempre negritos pra solidão.

NADA SOBRA, EIS TUDO

Há que se confiar no destino. Confiar que o que se pôde fazer foi o melhor pra ela, não importa o resultado. Pensar assim lhe traz alívio, lhe traz alento, lhe renova a confiança na vida - ela precisa ter confiança em alguma coisa. Quisera ela cair no alheamento do que lhe exige o coração... Queria ela ser feita de carne e osso, como os outros seres humanos. Mas ela é feita de carne e coração. Carne sangra, coração se parte, nada sobra, eis tudo.

Mas o pior, o pior de se ver de novo fechando portas atrás de si, é olhar pra frente e não conseguir ver a estrada que vai além da curva. Ela não consegue ver, embora saiba que a estrada continua sempre em frente, embaixo de seus pés. Mas a curva não deixa ver se o que vem é o abismo, o nevoeiro ou o mar infinito. Ela olha ao redor e não vê possibilidades. E ainda assim tem que confiar que tudo está certo e ela, mais uma vez, fez o que deveria fazer.

Não que estivesse apaixonada.

Mas recomeçar tudo dá um trabalho...

E, além de tudo, sempre há um amor que se perde: aquele que se desperdiça guardado, procurando alguém pra se dar, é menos grave do que o amor-próprio que se esfola. Dói, tudo isso lhe dói por dentro, e por fora; e ela chora. Ela agora se permite chorar. Dói não porque ela gostasse demais dele, mas porque ela simplesmente precisa de alguém.

Ainda que não ele. Alguém, simplesmente.

Dói, mas passa.

sábado, 15 de novembro de 2008

O OLHAR DO ESPECTADOR

De sua posição segura no olho do furacão, ela finalmente tem o olhar privilegiado do espectador, e a tudo assiste sem tomar parte ativa. Mantém-se alerta e divertida vendo pegar fogo o circo das relações ditas comunitárias, observando os erros de seus amigos pondo lenha nas fogueiras das vaidades e disputas humanas. E agora, pela primeira vez plateia, e não protagonista, e o melhor: por escolha e mérito próprios.

Vê os erros dos outros, amigos, agora com o distanciamento de uma estranha. Erros óbvios, como quem vê uma casca de banana e pula em cima dela. E se espanta quando cai.

E vê a si mesma, errando e acertando, acertando e errando, porém plena, cônscia de seus atos e dos frutos dos seus atos, com a mente aguda atenta a tudo o que o coração tirano pretende ditar. Pela primeira vez ela tem sobre si o juízo claro desperto, e isso faz toda a diferença sobre seu sofrer outrora habitual, hoje reduzindo a momentos, a que - porra!, ela também tem direito, que merda! As coisas desmudam-se simples ante seus olhos, e desvela-se o último véu de autodesconhecimento.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

COSMOPOLITA

Como ela gostaria de não ser cosmopolita! Como gostaria de não ter que ir atrás de
alarme de carro
licença para uso de espaço
antiácido pra refluxo
refil de maquiagem
vacina pra gata
checkup ginecológico
reclamação da tarifa abusiva do banco
hidratação pro cabelo
insulfilm
segunda via de RG
bainha da jeans nova
optifree pra lente
BO do roubo do celular
esmalte no tom certo do vermelho
renovação do seguro do carro
reserva de hotel pro carnaval
baixar álbum mp3 na net
novo regime infalível
sapateiro pro saltinho do sapato que agarrou no bueiro
encadernação da monografia
cartucho pra impressora
pagamento atrasado do aluguel
msn sempre adiado com a melhor amiga nos EUA
agendamento de limpeza no dentista
pagamento mínimo da fatura do cartão
celular daquele carinha gato
academia de natação com piscina tratada ionicamente
consulta na cartomante
alinhamento e balanceamento
visitar a avó que já é bisa
entrega do trabalho da pós
retrabalho de funcionário
faxina no quarto
desmarcação do psicólogo...

Às vezes, ela gostaria de trocar tudo isso por tardes infindas, bordando na sala de alguma fazenda perdida em algum dos milhares de quilômetros quadrados de Brasil interior...

Ai! Quem dera ter tempo para ter tédio!

Queria ter tempo para pensar quem ela era, o que queria, o que lhe faltava para ser plenamente feliz.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

NA SOLITÁRIA

Vendo um peixe beta sozinho, isolado num desses quadrados de vidro, ela compreendeu a grande verdade da vida: antes só do que sushi.

SEMPRE POR CONCLUIR

Ela tem uma alma feroz. O seu contínuo desafio de se domar é que lhe confere o mínimo de sociabilidade que tem. O estado bruto em que se encontra lhe imprime a sinceridade de alma que ela carrega, tornando-a cortante em sua transparência.

E é esse estado de latência e possibilidades que lhe dá beleza, aquela beleza inerente às coisas sem refinamento, quartzo transparente, ainda que fumê, mas que não foi lapidado. Magnetismo daquilo que é natural, desmedido, destemperado e fora de controle, de magnitude desconhecida, como a tempestade que ela apenas ouve e imagina através da janela fechada.

Sua alma pessoana só sossega com a chuva branca que cai do céu com estrondo, sem relâmpagos ou trovões.

É essa tempestade ao mesmo tempo forte e serena que preenche os espaços da sua alma. É disso que ela é feita: qualquer coisa rústica, tosca e inacabada, com aquela sensação permanente de algo sempre por concluir, frase a completar, lacuna a preencher, pedra a lapidar.

É essa falta de polimento e de suavidade que faz dela o que é: firme e tranquila em meio a seu próprio caos, magnética a ponto de não se poder ignorá-la. Antes isso que ser aquele que passa pela vida sem despertar curiosidade, atração, ira, desejo, fúria, alegria, repulsa.

Antes isso que ser aquele que passa pela vida sem despertar.

Mais completa ela será quanto mais anacrônica for, mais perfeita quanto mais em estado bruto estiver, pois aí será inteira, sem excluir peça alguma do quebra-cabeças dessa alma inquieta que a preenche.

Antes isso que ser aquele que passa.

CAOS

Ficou por longas horas sentada em sua poltrona, olhando o vazio da parede branca à sua frente – ou seria o vazio da sua vida? Quase sem olhar, estendeu a mão para o caderno na cabeceira. Ela era assim mesmo – só criava no caos. A felicidade não lhe produzia nada. Seus temores, suas dores, suas ânsias – só isso a compelia a escrever.

ESTÁ FEITO. ESTÁ BEM FEITO, N'IMPPORTE QUOI

Então, estava feito. Fosse qual fosse o resultado de sua atitude, não havia mais como voltar atrás. A mensagem tinha sido enviada pelo celular, e agora só restava esperar – talvez uma resposta, talvez a dor aguda que (ela sabia) mais cedo ou mais tarde lhe rasgaria o peito, com a certeza dos fatos: ela havia terminado tudo, à distância, sem palavras sonoras, e não haveria um amanhã para os dois.

PARA DEPOIS QUE O TEMPO NOS LIBERTAR A TODOS

A certeza de que havia um mundo além deste lhe dava alento. Fazia-lhe sentir que, algum dia, fora do tempo, poderia olhar de novo nos olhos dele e sorrir, e lhe dizer todas as palavras que agora lhe decompunham no peito, lhe doíam na garganta e lhe transbordavam nos olhos. Poderia lhe agradecer por tudo o que havia aprendido com ele. Poderia dizer o quanto o amaria pra sempre, ainda que outros viessem, pois todo amor, ainda que acabe, é sempre eterno; é eterno o que nos moldou a alma e nos tornou alguém melhor simplesmente por sairmos de nós mesmos.

As lágrimas lhe banhavam o rosto enquanto ela tomava café-com-leite mais rosquinhas de amendoim, e pensava nisto: um dia, fora do espaço e do tempo, lhe diria o quanto ele fora e sempre seria importante; ele sorriria de volta já acima de todas as mágoas mundanas, e nada mais precisaria ser dito.

Respira fundo.

Por enquanto, ela ainda estava presa no tempo...

HOJE

Hoje, ela pode tudo. Hoje é o único dia em que ela pode alguma coisa; então, que seja tudo.

INÍCIOS. MATIZES. ESPECTROS.

Disto ela era feita: de palavras e pausas, de manhãs mornas e madrugadas de julho, de risadas abafadas e lágrimas incontidas.

Escarlate e púrpura.

Ela conduzia sua vida para além do espectro de cores visíveis. Estava disposta a descobrir o que havia abaixo do infravermelho e acima do ultravioleta. E na rodaviva do discodenewton da sua vida, pintava cada momento em matizes fortes, para que não se desgastassem com o passar dos anos, para que não sumissem debaixo de camadas de poeira e demãos de caiação, até que a loucura e a vontade estivessem subjugadas pela velhice, além da possibilidade dos grandes e pequenos feitos.

ESPELHO. LÂMINA

Olhou-se no espelho. Estava de calcinha branca e blusa roxa. Usava a maquiagem básica que punha cotidianamente, que acentuava o fundo das bochechas, os olhos grandes e as sobrancelhas arqueadas. Não era feia, pelo contrário: era bem feita de rosto, com traços sofisticados e bem marcados. Não era um rosto comum, tinha algo de antigo. O corpo, ainda que cheio, era distribuído, curvilíneo. Gostava do que via. Pequenos detalhes a agradavam. As unhas curtas, de um púrpura profundo. A pinta sobre o lábio, à direita. O tom delicadamente pálido da pele, em contraste com o rosa morno das maçãs. Era bonita. Sem dúvida, gostava do que via.

Então, por que se sentia assim infeliz?...