segunda-feira, 17 de novembro de 2008

LÁGRIMAS PASTÉIS

Ela chora. Mas dessa vez ela chora em silêncio lágrimas conscientes de que são finitas, de que há um estoque limitado de água e sal para cair. O que já é um grande passo. Chora de manso, quieta, sem barulho ou escarcéu, sem soluços ou arroubos. Chora em tons pastéis, o que indubitavelmente é um enorme passo.

Ela sabe que só chora porque a insônia, a fome e o cansaço são sempre negritos pra solidão.

NADA SOBRA, EIS TUDO

Há que se confiar no destino. Confiar que o que se pôde fazer foi o melhor pra ela, não importa o resultado. Pensar assim lhe traz alívio, lhe traz alento, lhe renova a confiança na vida - ela precisa ter confiança em alguma coisa. Quisera ela cair no alheamento do que lhe exige o coração... Queria ela ser feita de carne e osso, como os outros seres humanos. Mas ela é feita de carne e coração. Carne sangra, coração se parte, nada sobra, eis tudo.

Mas o pior, o pior de se ver de novo fechando portas atrás de si, é olhar pra frente e não conseguir ver a estrada que vai além da curva. Ela não consegue ver, embora saiba que a estrada continua sempre em frente, embaixo de seus pés. Mas a curva não deixa ver se o que vem é o abismo, o nevoeiro ou o mar infinito. Ela olha ao redor e não vê possibilidades. E ainda assim tem que confiar que tudo está certo e ela, mais uma vez, fez o que deveria fazer.

Não que estivesse apaixonada.

Mas recomeçar tudo dá um trabalho...

E, além de tudo, sempre há um amor que se perde: aquele que se desperdiça guardado, procurando alguém pra se dar, é menos grave do que o amor-próprio que se esfola. Dói, tudo isso lhe dói por dentro, e por fora; e ela chora. Ela agora se permite chorar. Dói não porque ela gostasse demais dele, mas porque ela simplesmente precisa de alguém.

Ainda que não ele. Alguém, simplesmente.

Dói, mas passa.

sábado, 15 de novembro de 2008

O OLHAR DO ESPECTADOR

De sua posição segura no olho do furacão, ela finalmente tem o olhar privilegiado do espectador, e a tudo assiste sem tomar parte ativa. Mantém-se alerta e divertida vendo pegar fogo o circo das relações ditas comunitárias, observando os erros de seus amigos pondo lenha nas fogueiras das vaidades e disputas humanas. E agora, pela primeira vez plateia, e não protagonista, e o melhor: por escolha e mérito próprios.

Vê os erros dos outros, amigos, agora com o distanciamento de uma estranha. Erros óbvios, como quem vê uma casca de banana e pula em cima dela. E se espanta quando cai.

E vê a si mesma, errando e acertando, acertando e errando, porém plena, cônscia de seus atos e dos frutos dos seus atos, com a mente aguda atenta a tudo o que o coração tirano pretende ditar. Pela primeira vez ela tem sobre si o juízo claro desperto, e isso faz toda a diferença sobre seu sofrer outrora habitual, hoje reduzindo a momentos, a que - porra!, ela também tem direito, que merda! As coisas desmudam-se simples ante seus olhos, e desvela-se o último véu de autodesconhecimento.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

COSMOPOLITA

Como ela gostaria de não ser cosmopolita! Como gostaria de não ter que ir atrás de
alarme de carro
licença para uso de espaço
antiácido pra refluxo
refil de maquiagem
vacina pra gata
checkup ginecológico
reclamação da tarifa abusiva do banco
hidratação pro cabelo
insulfilm
segunda via de RG
bainha da jeans nova
optifree pra lente
BO do roubo do celular
esmalte no tom certo do vermelho
renovação do seguro do carro
reserva de hotel pro carnaval
baixar álbum mp3 na net
novo regime infalível
sapateiro pro saltinho do sapato que agarrou no bueiro
encadernação da monografia
cartucho pra impressora
pagamento atrasado do aluguel
msn sempre adiado com a melhor amiga nos EUA
agendamento de limpeza no dentista
pagamento mínimo da fatura do cartão
celular daquele carinha gato
academia de natação com piscina tratada ionicamente
consulta na cartomante
alinhamento e balanceamento
visitar a avó que já é bisa
entrega do trabalho da pós
retrabalho de funcionário
faxina no quarto
desmarcação do psicólogo...

Às vezes, ela gostaria de trocar tudo isso por tardes infindas, bordando na sala de alguma fazenda perdida em algum dos milhares de quilômetros quadrados de Brasil interior...

Ai! Quem dera ter tempo para ter tédio!

Queria ter tempo para pensar quem ela era, o que queria, o que lhe faltava para ser plenamente feliz.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

NA SOLITÁRIA

Vendo um peixe beta sozinho, isolado num desses quadrados de vidro, ela compreendeu a grande verdade da vida: antes só do que sushi.

SEMPRE POR CONCLUIR

Ela tem uma alma feroz. O seu contínuo desafio de se domar é que lhe confere o mínimo de sociabilidade que tem. O estado bruto em que se encontra lhe imprime a sinceridade de alma que ela carrega, tornando-a cortante em sua transparência.

E é esse estado de latência e possibilidades que lhe dá beleza, aquela beleza inerente às coisas sem refinamento, quartzo transparente, ainda que fumê, mas que não foi lapidado. Magnetismo daquilo que é natural, desmedido, destemperado e fora de controle, de magnitude desconhecida, como a tempestade que ela apenas ouve e imagina através da janela fechada.

Sua alma pessoana só sossega com a chuva branca que cai do céu com estrondo, sem relâmpagos ou trovões.

É essa tempestade ao mesmo tempo forte e serena que preenche os espaços da sua alma. É disso que ela é feita: qualquer coisa rústica, tosca e inacabada, com aquela sensação permanente de algo sempre por concluir, frase a completar, lacuna a preencher, pedra a lapidar.

É essa falta de polimento e de suavidade que faz dela o que é: firme e tranquila em meio a seu próprio caos, magnética a ponto de não se poder ignorá-la. Antes isso que ser aquele que passa pela vida sem despertar curiosidade, atração, ira, desejo, fúria, alegria, repulsa.

Antes isso que ser aquele que passa pela vida sem despertar.

Mais completa ela será quanto mais anacrônica for, mais perfeita quanto mais em estado bruto estiver, pois aí será inteira, sem excluir peça alguma do quebra-cabeças dessa alma inquieta que a preenche.

Antes isso que ser aquele que passa.

CAOS

Ficou por longas horas sentada em sua poltrona, olhando o vazio da parede branca à sua frente – ou seria o vazio da sua vida? Quase sem olhar, estendeu a mão para o caderno na cabeceira. Ela era assim mesmo – só criava no caos. A felicidade não lhe produzia nada. Seus temores, suas dores, suas ânsias – só isso a compelia a escrever.

ESTÁ FEITO. ESTÁ BEM FEITO, N'IMPPORTE QUOI

Então, estava feito. Fosse qual fosse o resultado de sua atitude, não havia mais como voltar atrás. A mensagem tinha sido enviada pelo celular, e agora só restava esperar – talvez uma resposta, talvez a dor aguda que (ela sabia) mais cedo ou mais tarde lhe rasgaria o peito, com a certeza dos fatos: ela havia terminado tudo, à distância, sem palavras sonoras, e não haveria um amanhã para os dois.

PARA DEPOIS QUE O TEMPO NOS LIBERTAR A TODOS

A certeza de que havia um mundo além deste lhe dava alento. Fazia-lhe sentir que, algum dia, fora do tempo, poderia olhar de novo nos olhos dele e sorrir, e lhe dizer todas as palavras que agora lhe decompunham no peito, lhe doíam na garganta e lhe transbordavam nos olhos. Poderia lhe agradecer por tudo o que havia aprendido com ele. Poderia dizer o quanto o amaria pra sempre, ainda que outros viessem, pois todo amor, ainda que acabe, é sempre eterno; é eterno o que nos moldou a alma e nos tornou alguém melhor simplesmente por sairmos de nós mesmos.

As lágrimas lhe banhavam o rosto enquanto ela tomava café-com-leite mais rosquinhas de amendoim, e pensava nisto: um dia, fora do espaço e do tempo, lhe diria o quanto ele fora e sempre seria importante; ele sorriria de volta já acima de todas as mágoas mundanas, e nada mais precisaria ser dito.

Respira fundo.

Por enquanto, ela ainda estava presa no tempo...

HOJE

Hoje, ela pode tudo. Hoje é o único dia em que ela pode alguma coisa; então, que seja tudo.

INÍCIOS. MATIZES. ESPECTROS.

Disto ela era feita: de palavras e pausas, de manhãs mornas e madrugadas de julho, de risadas abafadas e lágrimas incontidas.

Escarlate e púrpura.

Ela conduzia sua vida para além do espectro de cores visíveis. Estava disposta a descobrir o que havia abaixo do infravermelho e acima do ultravioleta. E na rodaviva do discodenewton da sua vida, pintava cada momento em matizes fortes, para que não se desgastassem com o passar dos anos, para que não sumissem debaixo de camadas de poeira e demãos de caiação, até que a loucura e a vontade estivessem subjugadas pela velhice, além da possibilidade dos grandes e pequenos feitos.

ESPELHO. LÂMINA

Olhou-se no espelho. Estava de calcinha branca e blusa roxa. Usava a maquiagem básica que punha cotidianamente, que acentuava o fundo das bochechas, os olhos grandes e as sobrancelhas arqueadas. Não era feia, pelo contrário: era bem feita de rosto, com traços sofisticados e bem marcados. Não era um rosto comum, tinha algo de antigo. O corpo, ainda que cheio, era distribuído, curvilíneo. Gostava do que via. Pequenos detalhes a agradavam. As unhas curtas, de um púrpura profundo. A pinta sobre o lábio, à direita. O tom delicadamente pálido da pele, em contraste com o rosa morno das maçãs. Era bonita. Sem dúvida, gostava do que via.

Então, por que se sentia assim infeliz?...