terça-feira, 15 de dezembro de 2009

ROSA DOS VENTOS

E eis que, de repente, tudo se ressignifica.

Tudo é relativizado pelo cruzamento de nossos caminhos. E, quando não posso ver a estrada à frente, após a curva; quando choveu demais e o barranco desmoronou; quando os buracos no asfalto quebram o eixo do meu coração, nem assim me encontro mais sem direção. Pois você me guia como um gps, me orientando na rota exata da certeza do amor pleno, além da paixão embriagada; me conduzindo para nosso futuro (assim mesmo, no singular), que sempre esteve ali, ainda que oculto pelo nevoeiro. Você faz tudo ficar mais fácil: farol de neblina, computador de bordo, aquecedor. Você é a minha chegada no fim de todas as corridas, de todas as largadas; o ponto final de todas as minhas linhas. É a certeza de que nada que me doa, retarde, engarrafe é assim tão importante, pois em relação a você meu movimento é sempre retilíneo uniforme.

sábado, 21 de novembro de 2009

TÍMPANOS

Tenho um tímpano nos ouvidos, pronto a me estourar os tímpanos.

Meu coração saiu do seu recuo da bateria e agora, além do peito, ocupa toda a minha garganta, meus seios nasais, o canal auditivo e as têmporas. Bate como um surdo, alheio ao incômodo que causa aos que ouvem, berrando para toda a bateria que é hora do desfile. O som grave bem marcado combina mais com o novo sambenredo, mais do que o choro do cavaco e o lamento da cuíca. Ele repercute por todo o meu corpo, se espraiando, acordando os tamborins e os sinos de vento que dormiam mudos e empoeirados.
 
Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum-tum-tum-tum.

REVIRÃO

E eis que, de repente, dou de frente com o definitivo da vida. Entendo finalmente a frase "o começo do fim da nossa vida". Pois o fim começa aqui, inexoravelmente. Este é o ponto da virada, quando toda uma nova paisagem se descortina além da montanha.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

TAQUICARDIA

E então, outro ciclo se cumpre, fatal e implacável. Fecha-se meu ano, fecham-se (mais) feridas, trancam-se portas. Jogo fora depressa a chave, para não cair em tentação. Fecho as portas e abro a janela, para que o sol me veja... E a ele me mostro toda, lângida, devassa, deixando que ele me desnude roupa por roupa, me limpando do mergulho que dei, de boa vontade, na fria escuridão. (De boa vontade, mas já chega.) A ele mostro o peito aberto, para que o sol me queime e nele eu me consuma – no calor do sol ou no calor que o frio na boca do estômago me provoca no rosto, na espinha, no ventre, no sexo. Leves tremores de terra. As borboletas no meu estômago provocam sete ponto quatro na escala richter, e ao soterramento me abandono, embriagada e entorpecida pelo desejo que (me) acorda depois de sufocado por nove metros de inundação.

Já escrevi melhor. Mas há muito tempo não me sentia tão bem.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

PICADEIRO (criar raiz e se arrancar)

Chego ao novo palco. Tudo me parece estranho: as cadeiras, o teto, a engrenagem complicada pra descer as varas... As cores... Tudo me parece desconfortável, e pouco depois de constatar isso percebo que o motivo é o vício. Estou viciada ao meu espaço, arraigada, entranhada como raiz de jequitibá. Que triste... Por isso tudo me parece hostil. Sinal de que estou velha. Mas, sacudo as teias de aranha e me atiro à nova ribalta como se fosse algo comum, como se nada fosse novo, como se meus quinze anos de palco – do mesmo palco – valessem alguma coisa. E começa a função. E sobe o teto. E estica a lona. Estou finalmente parada sobre o disco bege, cheiro doce e antigo, e sob o hexagrama treliçado de luz, sisal, poeira, suor e madeira. Tudo agora me é estranhamente familiar. Quase posso ver as mesmas cadeiras, as mesmas varas, o mesmo espaço vazio e ancho... As mesmas pessoas. E finalmente entendo como os mambembes dos circos de todos os mundos conseguem viver sem pouso fixo: aqui, sob meu teto, pisando firme meu chão, estou novamente – e sempre – em casa.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ANÁLISE COMBINATÓRIA

Dentre os milhares de eus possíveis, eis que escolho ser todos. Abrigo os eus possíveis e os impensáveis, os verossímeis e os inventados, e a resultante é que sou esta versão de quem sou; esta que fala, dança, ama, ri, anda em mim, agora, nada mais é do que uma variação do mesmo tema que, por ser infinito para dentro, vaza para fora nesta versão que nunca é a final. Versão que, estando em constante rearranjo, é, não diferente de si, mas também não exatamente igual. Cubo mágico. Todas as caras podem ser a minha cara. Todos os estilos podem ser o meu, ainda que eu não seja de nenhum deles. Liberdade de ser tudo o que se é, de exprimir toda as potencialidades das possibilidades das personalidades. Liberdade.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

SENTIDOS

Não venha me dizer que você também se sente assim.

Assim como? Como você sabe? Não venha me dizer que sabe como eu me sinto. Não, você não sabe. Só eu me sinto em mim, só eu sinto o que sinto da forma que sinto. Enfim.

Minha cabeça dói, mas estou leve. A vida se renova. Aprendi finalmente a falar, falar apenas o que deve ser dito, e me calar quando necessário. Acho que é esta a sabedoria: saber quando dizer o quê.

sábado, 29 de agosto de 2009

CONTINENTES E CONTEÚDOS

A roupa que a toca está cheia dela. O espelho de prata a olha de soslaio. Ela, estranha desconhecida de si mesma, hesita quando a mão à sua frente se mexe simultaneamente à sua. Estremece. Vertigem. A taquicardia persiste. A febre não cede. Algo em seus próprios olhos lhe é familiar, como se já tivessem sido dela antes de serem dela. Há muito ela deixou de sonhar. Só delira. Ainda não sabe se isso é bom ou ruim. Frio. Há quanto tempo não chora! Há quanto tempo suas lágrimas secaram e sua solidão absurda não escorre? Não saberia mais dizer. E não há sofrimento nisso. A gravidade é que a puxa pra baixo. Meu Deus! Quando, quando, Nossinhora, ela iria pensar que não sofrer não dói?! Os dentes batem. A estranha continua espionando. Como ela vigia de dentro da sua cabeça, ela duvida desses pensamentos. Desconfia. Não está acostumada. Será que foi lavagem cerebral? Será que é definitivo? Será que é grave? Será que ela ainda é a mesma? A mesma da carteira de identidade, das três assinaturas no banco, da firma no cartório, da conta na padaria? Ainda é a mesma dos trinta e sete porta-retratos espalhados pela casa, olhando todos de soslaio (soslaio, adoro essa palavra, soslaio. Soslaio. Soslaio. Repito-a até ela perder o sentido. Soslaio.). Ela olha de soslaio de dentro dela mesma e se esgueira de viés. Resolve sair de fininho antes que fique louca.

ANTI RESÍDUOS

SHAMPOO ANTI RESÍDUOS
LIMPA PROFUNDAMENTE, REMOVENDO AS IMPUREZAS DOS FIOS


Queria era um xampu que removesse os resíduos da sua alma.

Enche a mão com o xampu e esfrega o couro cabeludo. Esfrega, esfrega energicamente as pontas dos dedos na pele da cabeça, na esperança de que o produto lhe entre pelos poros e limpe profundamente as suas lembranças.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

UTILIDADES DOMÉSTICAS

Talvez seja só pra isso que eu esteja aqui: pra dar pezinho pros outros.

Pra fazer escada, minitrampolim, pra que os outros pisem, pulem, se impulsionem e saltem. Aquela de que todos precisam, aquela que é necessária, nunca querida; que é imprescindível, mas nunca lembrada quando nada falta. Talvez eu faça parte do universo das coisas úteis, alicate na maleta de ferramentas, e só. Talvez eu paire no canto da memória de todos como o durex que se esqueceu de comprar, o superbonder conservado na geladeira, o estepe na mala do carro, aquilo que deve estar ao alcance da mão quando preciso, mas não precisa se manter no campo de visão de ninguém. Talvez sim.

Mas minha alma anseia pela esfera das coisas belas, das coisas doces, das coisas inúteis; de tudo o que não é necessário e por isso tão desejado, como a música, como o arcoiris no fim da tempestade, como o balé, como o teatro, como os livros de ficção. Não, nada disso é necessário, e no entanto minha alma secaria antes de me chegar aos olhos se não tivesse sempre uma boa dose de tudo isso... Não como uma planta definha sem sol, mas como um gato que passa seus dias numa casa sem tapetes, almofadas e novelos de lã... Como um prato de mingau de fubá sem sal.

É chato ser útil. Queria ser totalmente desnecessária. Sair da estante dos eletrodomésticos, das ferramentas, dos equipamentos, das mileuma coisas úteis que as pessoas inventaram para que outras pessoas pensassem que tudo aquilo é imprescindível. Não sou imprescindível, e isso me fica claro dia após dia. Todos fazem questão de me carimbar isso na pele, bem entendido. Alguém tem que fazer o serviço sujo. Alguém tem que fazer o serviço. Alguém tem que fazer o que qualquer um poderia ter feito, mas ninguém nunca faz. Alguém tem que levar a bronca, ouvir a cobrança, alguém tem que ficar olhando as crianças enquanto o casal vai pro cinema.

Tudo isso me aperta a garganta, mas de dentro, como se uma corda me fosse passada ao contrário, tentando explodi-la em vez de estrangulá-la. Tudo isso me machuca como aquele pedregulho que entrou entre o dedo anular e o mínimo do pé, dentro da meia justa no tênis apertado: roça, roça, roça, irrita, fere, mas sem sangrar de fato, sem nunca precisar dar ponto.

Há alguém no mundo que me olhe com outros olhos?

terça-feira, 21 de julho de 2009

WHAT A CLICHÉ...

Tenho pensado em ir embora...

Será que é possível? Como nos filmes, ter uma segunda chance, começar de novo, lá do princípio? Deixar pra trás tudo o que se foi, o que se fez, o que se quis... Deixar pra trás todas as relações utilitárias, os sonhos sufocados, as esperanças esvaídas, os projetos paralisados, como quem lança uma roupa enxovalhada no cesto e tira nova calcinha da gaveta; como quem começa uma folha nova deixar seus rejeitos, seus complexos, seus trejeitos – começar num novo lugar a ser uma pessoa nova? Deixar de ser aquela a quem todos usam e, como nos filmes, passar a ser aquela a que todos almejam, por ser nova? Não só nova naquele lugar, mas porque quando se muda de lugar se passa, de fato, a ser uma nova pessoa... É possível?

E, mais que isso, a verdadeira pergunta, aquela que me angustia no âmago, que está no cerne de todos os medos: será que eu teria força suficiente para tanto, para tal feito? Será uma questão de coragem? Será mera covardia?

E para onde ir? Em qual dos infinitos pontos no googlemaps espera o meu futuro? Por que fui nascer precisamente aqui? Porque fui nascer precisamente aqui, é aqui que preciso ficar? Ou essa imprecisão de meu navegar me é intrínseca, e implica sempre em desbravar mais e mais mares de morros, dentro e fora de mim? Será que depois de um tempo nessa nova coordenada eu ansiaria por novas latitude-longitude, e meu coração-gps me lançaria de novo no caos, me enviaria por um novo itinerário a um novo cais?

Quantos trópicos preciso cruzar dentro de mim para fazer novo meu lugar, para me fazer nova neste mesmo lugar? Quantos graus preciso deslocar, e em que sentido? Que sentido tem ficar? Que sentido tem partir, meu Deus? O que me aguarda depois da próxima curva?

Tudo pra trás, todos pra trás, tudo o que se foi, que se fez, que se quis; tudo o que foi ruim e o que foi bom, como quem tira uma pele por inteiro, exoesqueleto de mágoas, rejeições e mitos; será que dá?

Isso tá horrível, eu sei. Nada inspirada. Apenas precisando gritar, como sempre; mais do mesmo. Nada de novo debaixo do sol.

terça-feira, 5 de maio de 2009

PFFFFF...

Quero escrever, há dias que quero escrever. Há coisas aqui dentro que precisam do exorcismo da tela branca e das palavras pontuadas, uma a uma, ao som tlec tlec tlec. Mas tudo quanto penso me vai como me veio, tudo tão fugaz... E se não consigo fugir, tampouco consigo escrever. E é isto o que escrevo, para não murchar como balão de festa de ontem.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

...e se eu for o primeiro a prever e poder desistir do que for dar errado?

Há algo dentro de mim que quer sair pelos olhos e pela boca, transbordar num choro tranquilo ou num canto infinito, e no entanto não sai. É freado por não sei que medo de ser feliz com o pouco que tenho, com o pouco que me sobrou e que, no entanto, é tão mais que o que sempre tive... Medo de descobrir que a felicidade é simples, cotidiana e corriqueira, feita de pequenos pedaços daquilo que é possível fazer com a vida que a vida nos dá dia após dia, e não aquele ouro impossível que está no inatingível futuro inexistente, sempre no fim do arcoíris, aquele ouro perfeito e etéreo que está sempre fugindo das nossa mãos. E que me ensiaram a perseguir obstinadamente.

O futuro é uma ilusão. Só existe o agora.

A felicidade não é um perfeito estado de graça, em que flutuamos continuamente em vez de andar, com a vida se afigurando numa arbórea, constante, retilínea e perfeita estrada cor-de-rosa – é o que descubro pouco a pouco, pasma e perplexa à medida em que avança minha história. Começo por fim a perceber que a felicidade é uma colcha de retalhos, cheia de detalhes cinzas e insignificantes, pespontos, nós aparentes, trocas de linha no meio da trama; cheia de lágrimas que dão o brilho aos sorrisos que se seguem, continuamente; cheia de dia-a-dia... E por isso é bela, possível e presente.

O futuro é uma abstração.

Não tenho me reconhecido. Não me identifico mais nas minhas ações mais refletidas, nas minhas reações menos destemperadas, no perdão que aprendi a conceder. Me desconheço e aprendo a me re-conhecer, nova e ainda a mesma de sempre, renascida, re-renascida e novamente re-renascida.

Hoje, tenho a mim. Plena, inteira porque feita de retalhos. E começo a achar que o meu todo é mais que a mera soma das minhas partes.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

'CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO'

Bebi, confesso.

Bebi muito.

Bebi tudo.

Bebi até ficar lúcida. E encarei – de frente, de costas, de lado, de viés – tudo aquilo o que dói em mim. E só vi você. Vi você de frente, de perfil, de cima, de baixo. Vi você de mocinho, de bandido, de galã, de assassino da minha paz, da minha tranquilidade. Não você, propriamente, mas a falta que você deixou no seu lugar, me fazendo companhia nas noites de frio, nas noites de sexta, nas noites de lua, nas noites de insônia. Sua falta me assassina. Sua falta me dói como um atropelamento. Fraturas múltiplas, hemorragia interna e parada cardíaca. Sua falta me dói como um infarto.

Só um tratamento me traz de volta à vida: sua vinda. Sua volta. Sua visão, sua imagem, você inteiro pra mim, em mim, em mim.

Meu juízo sai pra passear todas as vezes que a sua lembrança me bate à porta. Quando sua ausência me visita, sirvo a ela lágrimas quentes com um toque amargo, suspiros de moça e espetinhos de coração. Sirvo-te rins, fígado, língua – trocando em miúdos, o que sobra de mim depois da dor que me dilacera me fazer em postas, temperar com sal e cozinhar em banhomaria.

Será que ainda te sirvo? Será que dizer teamo ainda serve de alguma coisa? É possível, ainda, ser feliz, ou é um plano que terei que adiar para a próxima encarnação?

Acho que a felicidade de te ter está fechada a vácuo, num saco plástico, dentro do freezer. Prazo de validade indeterminado.

PONTO FINAL

Sim, cruel, pode até ser. Dura. Fria? Espero que sim, na verdade; é algo que levei anos para conquistar. Mas nunca poderei ser acusada de desleal ou injusta. Ainda que eu me roa, ainda que me doa, ainda que me dobre: mantive a lealdade, ainda que não a mim, e este é meu dilema. Se você estivesse no meu lugar, como agiria? Fácil falar, não é? Facílimo falar sem jamais se colocar no lugar do outro. Com os meus óculos de grau, como você veria o mundo? Como você se veria se tivesse meus olhos, meu cérebro, minhas entranhas? Se as lágrimas que contive, abafadas pela injustiça que me foi feita, escorressem por dentro em você, em vez de mim, o que você faria diferente? Seria alguém melhor do que eu sou agora? Sou quem pude ser, faço o que posso a cada momento sem deixar de ser quem me fiz e me faço a duras penas a cada sol, fiel à essência de meus valores, meus dois valores, mais que qualquer outros.

Acho estranho, de fato, acho. Amizades se fazem, se vão, são como vento. Acho estranhíssimo. "Seja o vosso sim, sim; e o vosso não, não". Difícil lidar com esse mundo de hoje, quando um "sim" quer dizer "às vezes"; e um "não", "quem sabe?".

Cansada de só fazer o errado, aos olhos dos outros, toda vez que faço o mais certo possível para que os danos de toods sejam, ao menos, minimizados. Porque não existe escolha sem dano, nessas situações. E quem ficou danado? E quem deveria ficar? O que está errado, afinal: o erro menor entre os que podiam ser escolhidos, de danos menos extensos, já que não há como escapar ileso; ou os olhos dos que me vigiam, e os dedos acusadores dos que me julgam?

E que amigos são esses os que me ouviram só para me contar? São puros e imaculados como os dedos de Deus? É isso, acaso, a lealdade? Vírgula.

Não quero mais viver no meio disso, no meio dessa gente que não se respeita, que não me respeita, que me conta e me espalha no ventilador. Deslealdade. Injustiça. E eu, que tanto me esfolo pensando em não jogar as palavras dos outros no vento... Que recebo? Dedos acusadores, "porque você é isso, porque você é aquilo, não olho na sua cara porque fulaninho disse isso, porque me disseram não-sei-que mas não posso dizer o santo..." Antes pusesse todos no fogo, ardessem e se purificassem na fogueira de suas vaidades humanas, instintos animais. Não quero mais ser conivente com nada disso, visto que um abismo nos separa. Eu vim de algum lugar fora da estratosfera, e de hoje em diante só vou agir de acordo com os meus.

"Felizes aqueles que nada têm, pois nada lhes pode ser tirado nem diminuido".

quinta-feira, 2 de abril de 2009

AINDA EM CONSTRUÇÃO

Trago dentro em mim uma memória ancestral que não sei de onde. Trago aqui as lembranças das coias todas, 237 eras entranhadas nos poros da minhalma.

Lembro o gosto amargo de sal na boca das mulheres que perderam seus maridos para o mar tenebroso, entregues ambos à tormenta. Lembro (...)

Tudo o que dói neste mundo dói em mim. E o doer não me pesa; antes me liberta, pois é a certeza de que a dor não é a exceção, e isso faz de mim alguém mais plausível do que seria caso não me doesse.

Tenho as letras de todos os poemas perdidos aqui dentro... Ecoam, desconexas, perdidas umas das outras e de mim, em um emaranhado de frases soltas e palavras sem sentido que, às vezes, me escapam pelos olhos.

LIÇÕES

É melhor começar a aprender o que a vida quer lhe ensinar. Repetir de ano é muito ruim. Se não se aprende por bem, se aprende por mal.
Se tudo fosse tão simples como ser ou não ser...

Ser, não ser. Ser, deixar de ser. Não ser e querer ser. Ser, deixar de ser sem querer deixar de ser, voltar a ser. Precisar ser e não querer. Precisar ser e não poder. Ser e não querer ser, deixar de querer ser, não ser. Ser, deixar de ser e voltar a ser daí a três encarnações. Eis as questões.

sexta-feira, 27 de março de 2009

VEM, VAMOS ALÉM QUE A VIDA É PASSAGEIRA

Quase não penso mais em você.

O ruim é que, quando penso, o vazio que lateja no meu peito, no meu corpo, na minha alma inteira, é tamanho, que nada nunca o preenche. Minha garganta dói a sua ausência, meu corpo inteiro te reclama, te exige, te demanda, te grita, e minha garganta dói.

Não penso em você de propósito.

Mas a vida parece querer empurrar meu olhar pra você, sempre, sempre, de uma forma ou de outra. No show que passa na tevê. Na música que alguém toca numa balada qualquer. Na bebida que me oferecem, na cantada que me passam, no cabelo que elogiam...

Meu Deus, meu Deus, que buraco é esse? Que cicatriz é essa que nada nunca tampa, nada nunca cura, nada nunca, nada, nunca nada... Cadê você, quando é que você vem, quando é que você vem de vez pra mim, pra devolver tudo o que você me roubou, minha paz, meus dias iguais, o rosto seco, o desconhecimento de tantas infinitas coisas... Quando penso que te esqueci, me vem a vida ou sei lá que diabos, me empurrando qualquer coisa que cheira a você, rescende a você, e tudo isso me dói, me dói, me dói...

São flashes do seu sorriso, são pequenos trejeitos, são gírias que me pego falando. Matam mais que uma punhalada nas costas.

Sua falta de palavras me rasga, não simplesmente quando elas me faltam, mas quando elas vêm, poucas, escassas, frias, distantes como você agora. Tão diferentes das palavras-ondas-sonoras que você me dirige quando está aqui, ao meu alcance, ao alcance dos meus beijos, dos meus braços, dos meus lençóis...

Que merda, que merda, que merda. Isso é tudo. Que merda. Queria não te querer assim, mas quando sua falta bate, não bate: me espanca. Me chicoteia. Me tortura. Sua falta me agride. Sua falta me fere, gera lesões corporais, e nem posso te processar por perdas e danos, porque não há mão aqui, nem a me bater, nem a me acalentar.

Ainda estou nas suas mãos. Será que você sabe?

E que sentido tem isto tudo? Meu Deus, meu Deus, meu Deus, por que é que tudo isso não acaba logo? Que mal fiz eu aos deuses todos? Quando é que eu vou voltar pra casa?

Sua falta se deita comigo todas as noites. Sua falta me sufoca, me tira o ar, me dá asma. Sua falta é a sensação de que eu, permanentemente, estou esquecendo alguma coisa. Sua falta me esgana, me enforca, me estremece dum jeito que eu me olho e penso não sou eu, essa não sou eu. Essa que eu sou não é quem eu era, eu me quero de volta, eu preciso que você volte.

Queria que não fosse eu, mas sou o que fizemos de mim, o que pude fazer agora que você se foi; o que a vida fez de mim, o que pude fazer com o que sobrou. Quero te ter a metro, não a retalho, Deus, olha pra isso, olha pra mim e tem dó, tem dó, mais que justiça, força ou coisa que o valha, agora preciso da sua piedade, senhor, antes que eu me afogue, me afogueie, me atole, me alheie de todo o resto, meu Deus, meu Deus, meu Deus.

quarta-feira, 11 de março de 2009

IMAGEM A RETALHO

O espelho se fragmenta ante a ação bruta e repetida da escova de cabelos.

Milhões de faces do inimigo me olham agora, iradas, cintilantes, cruéis e implacáveis.

Nosso vermelho se espalha pelo chão.

Dou-lhes as costas e delas renasço, ascendente, esvoaçante e rica.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Ela era uma figura.

Uma figura difícil, sem dúvida.

A figurinha mais difícil de qualquer coleção.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

PARA QUANDO O TEMPO SUPRIMIR MINHA PRESENÇA NESTA TERRA

Quando eu me for, considerem este rabisco o meu testamento.

Acalmem-se, acalmem-se todos!

(Digo isto mais por efeito retórico que por sentir protestos efusivos quanto à minha partida.)

(Não que não aconteçam; tudo é possível neste mundo de meu Deus; mas se tem uma coisa que esses vinte e oito anos conseguiram me ensinar, foi: manter os dois pés no chão.)

Não é que eu pretenda voltar pra casa por agora, mas deixo registradas estas palavras, não necessariamente minhas últimas, não necessariamente meu último desejo. Apenas mais algumas palavras.



Minhas fotos, deixem com meus pais, para que cada imagem possa me trazer à lembrança quando meus contornos começarem a sumir de suas mentes – porque, não se iludam, mesmo da mente dos pais, um dia nossos rostos desbotam, e é bom que desbotem... Deixem com eles as fotos que bati e aquelas em que apareço - ainda não sei qual das duas capturou melhor minha alma.

Minhas roupas, doem. Doem tudo: sapatos, saias, bijuterias, agasalhos, tênis, roupas de ensaio (toda a infinidade delas), tudo o mais que puder ser doado. Doem para quem precisa mais que vocês, a quem tentei chegar perto na vida e por covardia, por omissão, por egoísmo, por falta de tempo, nunca cheguei o quanto deveria. Mesmo quando o mundo doía em mim, e o remédio é buscar aqueles que sofrem mais que nós, nunca os alcancei, nunca os busquei de fato - que minhas roupas os alcancem e aqueçam.

Meus escritos, publiquem. Ficarei feliz, onde estiver; pensem assim se os consola. Assim se lembrarão de mim por minha obra, não por esse ser eternamente errante, constantemente incompleto, persistentemente imperfeito. Publiquem meus escritos, uma vez que meu teatro morre a cada vez que fecha o pano, obra fugaz, criação evanescente. Publiquem-me, para que o verbo se faça carne, e eu alcance o infinito.

Minha gata, cuidem. Acendam a luz do banheiro para que ela coma a ração. Nunca ponham demais, porque ela não come ração velha. Troquem a água todos os dias, sempre na vasilha vermelha (ela só bebe nela). Abram a janela às quatro da manhã: ela sempre dá uma voltinha por esse horário. Fiquem tranquilos; ela os lembrará de tudo isso. Gatos são leais. Quando ela deitar na ponta da cama, ou sobre seus pés, agradeçam. Vocês podem nunca saber o valor disso, mas tenham certeza: houve dias em que isso fez toda a diferença entre achar que estou sozinha neste planeta, e ter certeza.

Meu quarto, meus pequenos bens: dispersem. Dêem de presente. Rifem. Façam um bazar. Embrulhem e dêem. Doem-me. Façam minha energia circular; eis a única maneira de me reter. Por mais tempo que eu tenha dedicado a me registrar no meu quarto nesta terra, na cor de suas paredes, nas lantejoulas das almofadas, no brilho das contas em cada canto do quarto, em cada detalhe que me imprime naquele lugar, estejam certos: depois que eu me for, nada disso me terá importância.

E, finalmente, meus textos de teatro: queimem. Queimem tudo, apesar de ecologicamente incorreto. Pois só pelo fogo, cremação, combustão completa (pena que não expontânea, caso em que eu seria mais feliz), os fragmentos da minha alma poderão se reunir a mim no ar, no éter, redenção plena e derradeira, e me completar. Cada personagem que passou por mim levou parte do que fui de nascença, e eis a única maneira de me restituir minha completude, ainda que em morte.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

"Je me coryais riche d'une fleur unique, e je ne possède qu'une rose ordinaire"

A que são todos capazes... Todos, meu Deus, todos! Mentiras, omissões, desconsideração... Deslealdade. E não dói menos em mim pela deslealdade não ser comigo. Me dói olhar a deslealdade com qualquer criatura. Eis a única coisa que não tolero, e não sei se isso é bom ou ruim. O fato é que não desejo ser de outra forma. Se me flexibilizar neste sentido significa ser como eles, ser um deles... Prefiro ser inflexível como um paredão de rocha. Machadinhas e balança, justiça e lealdade, pai Xangô a me guiar.

Meu senso de lealdade só é comparável ao de um mafioso siciliano: se você mantiver a sua palavra, eu manterei a minha. Até debaixo de uma saraivada de balas.

Inacreditável o quanto nos enganamos com aqueles a quem amamos - e que achamos que nos amam. Impossível amar e ser desleal ao mesmo tempo...

E eis que descubro aquilo que pode fazer de mim, criatura apaixonada, entusiasta e desmedida por excelência, a mais fria das criaturas, coração de gelo, indiferente a qualquer apelo ou argumento.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

AGORA É QUE SÃO ELAS

Começo a entender porque me dedico tanto a Ela, a todas Elas, cuja gestação é longa, às vezes mais de ano, e a existência, breve. Aquelas que vivem em mim por poucas horas por semana, durante uma curta temporada num teatro qualquer. Dedico a Elas, todas, um amor sem medidas ou cobranças, uma devoção absoluta e neurótica, uma doação irrestrita e ofegante. Avassaladoras, todas elas, me tomam de um só golpe, sempre, e depois passam meses me provocando, flertando comigo, até que se decidam a descer por completo e usar meu corpo, minhas mãos, meus olhares, minha voz para que seu verbo se faça carne em mim...

Dedico-me a elas porque tenho fome.

Dedico-me, e me debruço, e me consumo, frente à irresistível tentação de esquecer-me de quem sou, e sê-las. Porque preciso criar. Porque, se não criar, eu me destruo. Porque, se eu não for todas elas, eu deixarei, fatalmente, de ser – não só eu, mas qualquer outra. Porque uma vida me é pouca para ser tudo o que há dentro em mim, e a ideia não ser me dói às raias do insuportável.

Dedico-me a elas, todas, à Joana, à Charlotte, à Elisa, porque tenho sede.

Ser quem sou nunca me basta. Porque sou qualquer coisa entre o que sonhei ser e o que fiz de mim. Nesse meio de caminho, estão Elas, todas elas, que são e serão sempre aquelas que eu poderia ser, caso... Se... Não fosse...

E, afinal, elas não são feitas do ar à minha volta: são feitas da minha carne, da massa das minhas ideias e do fermento da minha emoção. São feitas da minha poesia, das imagens que trago em mim, dos desejos que eu nem sabia que tinha, dos nós das minhas entranhas, da beleza adormecida, da angústia insone, da razão que às vezes cochila.

Acho que, quando sou delas, sou mais minha. Quando me regozijo com seus prazeres e glórias, preencho as lacunas que me dei. Quando vivo a dor de cada uma, banhada em luz, limpo-me da minha própria angústia. São dores boas de se viver: acabam-se quando apaga a luz e cai o pano. Descubro o Brasil a cada vez que a cortina se abre. Um novo continente por temporada.

Elas estão contidas em mim, presas, sufocadas. Quando sou delas, sou de alguém: sou de quem me possui, cativa; o que me tapa os buracos que me deixo. Elas só existem porque eu existo. Porque, não fosse eu, elas não seriam exatamente quem são: teriam o mesmo pai, é fato: o dramaturgo, mas não a mesma mãe, não o mesmo ventre. Elas são a criação; eu, a criadora. Embora elas me arrebatem, e me dominem, e me exijam. E é bom que o façam: sinto que sou importante na "vida" de alguém. Acho que só assim.

Dedico-me a elas porque não tenho ninguém por mim.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ELA-ELISA ou CLAVE DE LUA

(Para aquela que não sou e preciso ser, Elisa, ser de vento e música, alma sem corpo que perambula por sobre os textos, por sobre os palcos, e tenta baixar em meu corpo ainda recheado de mim, incorporar, e sempre evapora antes que eu a apanhe no ar. Pour Elise, minha personagem em "As Bruxas de Salém").


Elisa,

eu, do lado de cá da máscara, me observo em ti. Continuamente me observo em ti, e te pergunto:

Que parte de mim tu és?
Que parte de mim é esse eclipse, névoas, crepúsculos?
Que parte de mim alimentará teus olhos grandes e sonoros, tuas mãos pequenas e nervosas, tua garganta seca, boca amarga, coração duro? Tua frieza de mármore? Tua falta de lágrimas?

E tu, insensível, com o que me respondes?

Um sutilíssimo sorriso. Delicadeza. Silêncio.

Em que semínimas e colcheias tu te escondes?
Em que pausas?
Em que pautas?
Em que pautas tua dignidade de prata quando a clava da justiça esmorece sob o sol?

Pontua. Pontua. Pontua. Colcheias... Elisa-colcheia, meio tempo, meia lua. Contida por excelência, calada pela metade, amarga por inteiro.

Flutua, flutuuuuuuuuua entre legattos e stacattos, música ligadura de união, silêncio ligadura de expressão...

Tu não me respondes, e nessa tua resposta feita de mudez, melodia e olhos sem sal, mostras que a resposta está dentro em mim.

Mais que as notas, tu és as pausas, figuras negativas. Silêncios.

Elisa, minha querida, minha cara indecisa...

Eu, que sou um ser de palavras, emudeço diante de teu silêncio... Para falar a ti pego emprestadas as palavras do Baleiro:

Vem comigo, vem
Já tenho quase tudo que me basta
A flor no pasto
A mesa posta
Minha música e teu (?) calor
Agora só me falta aprender o silêncio.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

SENSAÇÕES

Trinta e seis graus. À sombra.

O suor, lenta mas continuamente, poreja; primeiro imperceptível; depois formando gotículas, gotas, até que escorrem. O sangue lateja nas têmporas. O rosto afogueado queima, arde em brasa. O cabelo, longo, lhe abafa as costas. Toda ela está quente, como um ferro de passar roupa que esqueceram ligado tempo demais.

Ela gira a torneira e põe os dedos curtos debaixo d'água gelada. Depois a mão. Depois o braço. O ombro. As pernas, o tronco, o rosto, a nuca. A água escorre feito metal pescoço abaixo, cabelo abaixo, corpo abaixo. A respiração presa pelo frio cortante do desligado do chuveiro, o rosto perdendo a cor de fogo, o sangue serenando nas veias, o peito refrescado pela vida líquida e gelada, que desce pelo ventre, pelo sexo, pelas pernas, pelos pés – isso é tudo o que preenche seu cérebro, e ela é só pele. Hortelã. Eternidade.

MEMÓRIA ALTERADA

Uma da manhã. Não há mais o que procurar nos links e sites. Ninguém pra teclar. Os olhos quase se fecham, a garganta dói, mas ela persevera. Espera pelo quê? Esperar, esperar... O contínuo esperar.

Sua cama a espera.

Ela espera que a felicidade a encontre amanhã. Já ao acordar. Hoje, seus dedos ainda procuram. E ela continua a esperar.

Será que ela sabe que a felicidade não existe? Que é só uma ilusão? Que a felicidade é algo inventado pelos seres humanos pra tornar a vida possível?

A felicidade só é possível no passado. É uma memória alterada. Fomos felizes porque ensinamos nossa memória que fomos felizes.

Mas ela ignora tal fato, e é feliz por isso.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Ela folheou bastante o caderno novo, escolhendo entre suas páginas iguais e igualmente vazias; se decidiu pela que lhe pareceu mais convidativa, e se pôs a derramar suas palavras no papel – iniciou seus relatos.
O que ela é?

Qualquer coisa entre o que sonhou ser e o que fez de si.

YIN E YANG

Há dias em que ela é o demais. O poluído. O over. O barroco. O exagerado. A personificação do kitsch. Tudo o que houver de carregado, de muito, de tudo.

Mas há dias em que ela é o silêncio molhado que sucede o céu desabado. Arcoíris e terra molhada. Alma lavada e verde sobre a grama.
E, afinal, chegando ao fim de seus esforços, ao fim de seus trabalhos, ao fim de suas metas, ela descobre que o fim é uma ilusão.

O fim, como o passado, é uma ilusão. Não existe senão o presente.

Tudo é espiral, tudo é recomeço, o tempo dobrado sobre si mesmo e sobreposto, como um lençol de casal que sai do varal ancho pra gaveta apertada.
Ela, em pleno meio do caminho, ainda não sabe se é feita do pó da estrada ou do brinde da chegada.

E não sabe se um dia vai descobrir.

SINERGIA

Ela é um somatório ilógico do que a vida fez dela, do que seus erros fizeram dela, do que os erros dos outros fizeram dela, do que ela deixou que os outros fizessem dela, do que ela não pôde evitar que fizessem dela; mais a genética, a herança ancestral do fado português que lhe corre no sangue, tudo o que comeu até hoje, os exercícios que não praticou na infância e adolescência, e mais o que trouxe consigo dalguma vida passada; tudo isso aliado à tristeza pelo que não conseguiu fazer, ao prazer de haver sido e à frustração do não poder...

E ela ainda não sabe se esse todo é maior ou menor do que a soma das partes.

ACIDEZ

Foi sempre uma depressiva. Foi sempre noturna. Foi sempre esse pessimismo rasgado, entornado no papel; esse tom amargo que aparece estampado em marca d'água até nas palavras mais amenas. Foi sempre melancólica, entediada, sufocada pelo seu eu que só se revela pleno no papel. Foi sempre esse mal-humor pela manhã, como se o sol azedasse o gosto da vida. De manhã sempre teve essa vontade de não falar e essa incapacidade de sorrir. E foi sempre essa vontade de chorar quando colocada em companhia de si mesma. Se forçada a olhar para fora quando seus olhos se voltam pra dentro, perdida que está em suas imagens interiores, ela não responde, apenas rosna.

Foi sempre um manancial de potenciais. Sua alma tem um desejo de tudo o que lhe paralisa a ação, que a estarrece ao ver o quanto há pra se fazer nesse mundo, e o quanto uma vida é pouca.

E há o medo. Um medo enorme de, ao desembarcar desse personagem que ela se deu, descobrir que foi só potenciais.

E o que são potenciais? Se não explorados, não são nada. Jornal impresso e não lido a tempo vira banheiro de cachorro.

O tempo vai passando, cada vez mais rápido à medida em que ela fica mais lenta para acompanhá-la. Sente o peso de cada ano elevado à quinta potência agora que se afasta irremediavelmente dos vinte e poucos anos. E, espalhados seus potenciais, suas ânsias e seus desejos pelo chão, ela se senta no meio de tudo e começa a triagem: pruma caixa as coisas que quer fazer primeiro, proutra aquelas que fará um dia caso sobre tempo (ilusão, ilusão!), e prum baú grande e antigo os feitos que ficarão pruma próxima vida. Sua caixa de Pandora. Ela o lacra bem e joga-o no mar de seus desapegos, com o receio de que seus projetos preteridos escapem do baú e, sobrevoando ferozmente sua cabeça, ataquem-na como as pragas do Egito e aferroem seu peito.

Difícil é escolher o que vai para qual caixa. O que ficará pelo caminho. Difícil porque sempre há o medo de chegar ao último porto e descobrir que se trouxe a bagagem errada, casacos de frio para o Caribe. E não dá nunca para voltar rio acima.

BONECA RUSSA

Feliz a cebola, que é só cabeça. Você a desembrulha, desembrulha, desembrulha, e eis que não há nada embrulhado no miolo.

Então, era isso o que ela era? Papel-cetim sobre papel-cetim sobre papel-cetim sobre papel-cetim assim por diante, até a loucura?

E lá, no fim de tudo, o silêncio.
A tempestade que se despeja de seu cérebro imobiliza seu corpo, e as palavras evaporam de suas mãos antes mesmo de pressentidas. Ela escreve porque a vida lhe dói. A vida lhe coça. A vida lhe dá cócegas.

Ela escreve porque não sabe dançar.

DESAGUAR

Ela se perde sempre a se perguntar:

– O fim de seu barco, qual será: será o porto, ou bem o mar?

REFAZENDO PASSOS

Para além de todas as terras há sempre o mar a nos esperar. O mar que é nosso de nascença e herança, mas a quem só retornamos após nos embrenhar e nos perder por sertões e desertos e matas, por dezenas de planaltos e planícies, mas carregando sempre o marulho das marés no peito e o sal das ondas nos olhos.

A ele retornamos como se nunca dele tivéssemos saído – sempre há um kansas para retornar.

Ela o sabia. Ela bem o sabia. Ao fim de todas as esperas nos espera o encontro. Ao fim de todas as andanças nos aguarda a chegada. Ao fim de todos os passos nos acolhe o abraço. Se assim não o fosse, não valeria vagar, viajar, vaguear, voltear: só valem pelo voltar.

Sim, ela o sabia: o ir só vale pelo voltar.

AGRADECIMENTO

E, mais uma vez, aqui está ela, sozinha no fim de todas as coisas. Ela e sua gata, sua companheira certa e cínica dos momentos em que tudo o mais falha. Pede a Deus força para levar essa lição (longa lição) até o fim, por mais que o aprendizado doa. Pede força e fé no fim breve.

E agradece por ter uma gata.

Gatos são aqueles que não te abandonam, até o fim – bom, também tem os labradores, mas os gatos têm diversas vantagens: cabem num transporte de 40 centímetros, tomam banho sozinhos, se desfazem de seus excrementos sem que você nem tome conhecimento e esquentam seus pés, dormindo enrodilhados sobre eles, enquanto você seca o rosto no travesseiro.

sábado, 10 de janeiro de 2009

PONTOS NO INFINITO

Somos todos sozinhos – isso ela aprendeu a duras penas, e só depois de enternder que aquela era a lição que a vida queria lhe ensinar. Pais, amigos, filhos, namorados – tudo ilusões. Encontros são pontos no infinito. Nós somos tudo o que permanece conosco. Já disse o mestre que só nós somos sempre iguais a nós próprios. Ela agora compreendia. E a madrugada da vida se abre em manhã pálida, mas com a promessa do sol radiante por trás das nuvens.

Só não se decepciona aquele que não espera. Só vê com lucidez aquele que não deixa o coração enxergar, aquele que não deixa seu eu se embolar com os eus alheios. Aí, sim, se pode ver o todo, se pode ver tudo de todos os lados, num relance. Só esse é livre. Só é livre quem é sozinho, sem ânxias, agonias e solidões. Só é feliz quem não precisa dos outros.

Só quem não precisa do outro consegue mergulhar plenamente na alegria de estar com o outro.

VÍTREA

– O que você fez da minha vida?

Pergunta ela sem palavras à figura de olhos vítreos que a encara enclausurada na moldura do espelho.

Duas lágrimas rolam, uma quente sobre a pele, outra fria sobre a alma.