domingo, 18 de janeiro de 2009

Ela folheou bastante o caderno novo, escolhendo entre suas páginas iguais e igualmente vazias; se decidiu pela que lhe pareceu mais convidativa, e se pôs a derramar suas palavras no papel – iniciou seus relatos.
O que ela é?

Qualquer coisa entre o que sonhou ser e o que fez de si.

YIN E YANG

Há dias em que ela é o demais. O poluído. O over. O barroco. O exagerado. A personificação do kitsch. Tudo o que houver de carregado, de muito, de tudo.

Mas há dias em que ela é o silêncio molhado que sucede o céu desabado. Arcoíris e terra molhada. Alma lavada e verde sobre a grama.
E, afinal, chegando ao fim de seus esforços, ao fim de seus trabalhos, ao fim de suas metas, ela descobre que o fim é uma ilusão.

O fim, como o passado, é uma ilusão. Não existe senão o presente.

Tudo é espiral, tudo é recomeço, o tempo dobrado sobre si mesmo e sobreposto, como um lençol de casal que sai do varal ancho pra gaveta apertada.
Ela, em pleno meio do caminho, ainda não sabe se é feita do pó da estrada ou do brinde da chegada.

E não sabe se um dia vai descobrir.

SINERGIA

Ela é um somatório ilógico do que a vida fez dela, do que seus erros fizeram dela, do que os erros dos outros fizeram dela, do que ela deixou que os outros fizessem dela, do que ela não pôde evitar que fizessem dela; mais a genética, a herança ancestral do fado português que lhe corre no sangue, tudo o que comeu até hoje, os exercícios que não praticou na infância e adolescência, e mais o que trouxe consigo dalguma vida passada; tudo isso aliado à tristeza pelo que não conseguiu fazer, ao prazer de haver sido e à frustração do não poder...

E ela ainda não sabe se esse todo é maior ou menor do que a soma das partes.

ACIDEZ

Foi sempre uma depressiva. Foi sempre noturna. Foi sempre esse pessimismo rasgado, entornado no papel; esse tom amargo que aparece estampado em marca d'água até nas palavras mais amenas. Foi sempre melancólica, entediada, sufocada pelo seu eu que só se revela pleno no papel. Foi sempre esse mal-humor pela manhã, como se o sol azedasse o gosto da vida. De manhã sempre teve essa vontade de não falar e essa incapacidade de sorrir. E foi sempre essa vontade de chorar quando colocada em companhia de si mesma. Se forçada a olhar para fora quando seus olhos se voltam pra dentro, perdida que está em suas imagens interiores, ela não responde, apenas rosna.

Foi sempre um manancial de potenciais. Sua alma tem um desejo de tudo o que lhe paralisa a ação, que a estarrece ao ver o quanto há pra se fazer nesse mundo, e o quanto uma vida é pouca.

E há o medo. Um medo enorme de, ao desembarcar desse personagem que ela se deu, descobrir que foi só potenciais.

E o que são potenciais? Se não explorados, não são nada. Jornal impresso e não lido a tempo vira banheiro de cachorro.

O tempo vai passando, cada vez mais rápido à medida em que ela fica mais lenta para acompanhá-la. Sente o peso de cada ano elevado à quinta potência agora que se afasta irremediavelmente dos vinte e poucos anos. E, espalhados seus potenciais, suas ânsias e seus desejos pelo chão, ela se senta no meio de tudo e começa a triagem: pruma caixa as coisas que quer fazer primeiro, proutra aquelas que fará um dia caso sobre tempo (ilusão, ilusão!), e prum baú grande e antigo os feitos que ficarão pruma próxima vida. Sua caixa de Pandora. Ela o lacra bem e joga-o no mar de seus desapegos, com o receio de que seus projetos preteridos escapem do baú e, sobrevoando ferozmente sua cabeça, ataquem-na como as pragas do Egito e aferroem seu peito.

Difícil é escolher o que vai para qual caixa. O que ficará pelo caminho. Difícil porque sempre há o medo de chegar ao último porto e descobrir que se trouxe a bagagem errada, casacos de frio para o Caribe. E não dá nunca para voltar rio acima.

BONECA RUSSA

Feliz a cebola, que é só cabeça. Você a desembrulha, desembrulha, desembrulha, e eis que não há nada embrulhado no miolo.

Então, era isso o que ela era? Papel-cetim sobre papel-cetim sobre papel-cetim sobre papel-cetim assim por diante, até a loucura?

E lá, no fim de tudo, o silêncio.
A tempestade que se despeja de seu cérebro imobiliza seu corpo, e as palavras evaporam de suas mãos antes mesmo de pressentidas. Ela escreve porque a vida lhe dói. A vida lhe coça. A vida lhe dá cócegas.

Ela escreve porque não sabe dançar.

DESAGUAR

Ela se perde sempre a se perguntar:

– O fim de seu barco, qual será: será o porto, ou bem o mar?

REFAZENDO PASSOS

Para além de todas as terras há sempre o mar a nos esperar. O mar que é nosso de nascença e herança, mas a quem só retornamos após nos embrenhar e nos perder por sertões e desertos e matas, por dezenas de planaltos e planícies, mas carregando sempre o marulho das marés no peito e o sal das ondas nos olhos.

A ele retornamos como se nunca dele tivéssemos saído – sempre há um kansas para retornar.

Ela o sabia. Ela bem o sabia. Ao fim de todas as esperas nos espera o encontro. Ao fim de todas as andanças nos aguarda a chegada. Ao fim de todos os passos nos acolhe o abraço. Se assim não o fosse, não valeria vagar, viajar, vaguear, voltear: só valem pelo voltar.

Sim, ela o sabia: o ir só vale pelo voltar.

AGRADECIMENTO

E, mais uma vez, aqui está ela, sozinha no fim de todas as coisas. Ela e sua gata, sua companheira certa e cínica dos momentos em que tudo o mais falha. Pede a Deus força para levar essa lição (longa lição) até o fim, por mais que o aprendizado doa. Pede força e fé no fim breve.

E agradece por ter uma gata.

Gatos são aqueles que não te abandonam, até o fim – bom, também tem os labradores, mas os gatos têm diversas vantagens: cabem num transporte de 40 centímetros, tomam banho sozinhos, se desfazem de seus excrementos sem que você nem tome conhecimento e esquentam seus pés, dormindo enrodilhados sobre eles, enquanto você seca o rosto no travesseiro.

sábado, 10 de janeiro de 2009

PONTOS NO INFINITO

Somos todos sozinhos – isso ela aprendeu a duras penas, e só depois de enternder que aquela era a lição que a vida queria lhe ensinar. Pais, amigos, filhos, namorados – tudo ilusões. Encontros são pontos no infinito. Nós somos tudo o que permanece conosco. Já disse o mestre que só nós somos sempre iguais a nós próprios. Ela agora compreendia. E a madrugada da vida se abre em manhã pálida, mas com a promessa do sol radiante por trás das nuvens.

Só não se decepciona aquele que não espera. Só vê com lucidez aquele que não deixa o coração enxergar, aquele que não deixa seu eu se embolar com os eus alheios. Aí, sim, se pode ver o todo, se pode ver tudo de todos os lados, num relance. Só esse é livre. Só é livre quem é sozinho, sem ânxias, agonias e solidões. Só é feliz quem não precisa dos outros.

Só quem não precisa do outro consegue mergulhar plenamente na alegria de estar com o outro.

VÍTREA

– O que você fez da minha vida?

Pergunta ela sem palavras à figura de olhos vítreos que a encara enclausurada na moldura do espelho.

Duas lágrimas rolam, uma quente sobre a pele, outra fria sobre a alma.