quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Ela era uma figura.

Uma figura difícil, sem dúvida.

A figurinha mais difícil de qualquer coleção.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

PARA QUANDO O TEMPO SUPRIMIR MINHA PRESENÇA NESTA TERRA

Quando eu me for, considerem este rabisco o meu testamento.

Acalmem-se, acalmem-se todos!

(Digo isto mais por efeito retórico que por sentir protestos efusivos quanto à minha partida.)

(Não que não aconteçam; tudo é possível neste mundo de meu Deus; mas se tem uma coisa que esses vinte e oito anos conseguiram me ensinar, foi: manter os dois pés no chão.)

Não é que eu pretenda voltar pra casa por agora, mas deixo registradas estas palavras, não necessariamente minhas últimas, não necessariamente meu último desejo. Apenas mais algumas palavras.



Minhas fotos, deixem com meus pais, para que cada imagem possa me trazer à lembrança quando meus contornos começarem a sumir de suas mentes – porque, não se iludam, mesmo da mente dos pais, um dia nossos rostos desbotam, e é bom que desbotem... Deixem com eles as fotos que bati e aquelas em que apareço - ainda não sei qual das duas capturou melhor minha alma.

Minhas roupas, doem. Doem tudo: sapatos, saias, bijuterias, agasalhos, tênis, roupas de ensaio (toda a infinidade delas), tudo o mais que puder ser doado. Doem para quem precisa mais que vocês, a quem tentei chegar perto na vida e por covardia, por omissão, por egoísmo, por falta de tempo, nunca cheguei o quanto deveria. Mesmo quando o mundo doía em mim, e o remédio é buscar aqueles que sofrem mais que nós, nunca os alcancei, nunca os busquei de fato - que minhas roupas os alcancem e aqueçam.

Meus escritos, publiquem. Ficarei feliz, onde estiver; pensem assim se os consola. Assim se lembrarão de mim por minha obra, não por esse ser eternamente errante, constantemente incompleto, persistentemente imperfeito. Publiquem meus escritos, uma vez que meu teatro morre a cada vez que fecha o pano, obra fugaz, criação evanescente. Publiquem-me, para que o verbo se faça carne, e eu alcance o infinito.

Minha gata, cuidem. Acendam a luz do banheiro para que ela coma a ração. Nunca ponham demais, porque ela não come ração velha. Troquem a água todos os dias, sempre na vasilha vermelha (ela só bebe nela). Abram a janela às quatro da manhã: ela sempre dá uma voltinha por esse horário. Fiquem tranquilos; ela os lembrará de tudo isso. Gatos são leais. Quando ela deitar na ponta da cama, ou sobre seus pés, agradeçam. Vocês podem nunca saber o valor disso, mas tenham certeza: houve dias em que isso fez toda a diferença entre achar que estou sozinha neste planeta, e ter certeza.

Meu quarto, meus pequenos bens: dispersem. Dêem de presente. Rifem. Façam um bazar. Embrulhem e dêem. Doem-me. Façam minha energia circular; eis a única maneira de me reter. Por mais tempo que eu tenha dedicado a me registrar no meu quarto nesta terra, na cor de suas paredes, nas lantejoulas das almofadas, no brilho das contas em cada canto do quarto, em cada detalhe que me imprime naquele lugar, estejam certos: depois que eu me for, nada disso me terá importância.

E, finalmente, meus textos de teatro: queimem. Queimem tudo, apesar de ecologicamente incorreto. Pois só pelo fogo, cremação, combustão completa (pena que não expontânea, caso em que eu seria mais feliz), os fragmentos da minha alma poderão se reunir a mim no ar, no éter, redenção plena e derradeira, e me completar. Cada personagem que passou por mim levou parte do que fui de nascença, e eis a única maneira de me restituir minha completude, ainda que em morte.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

"Je me coryais riche d'une fleur unique, e je ne possède qu'une rose ordinaire"

A que são todos capazes... Todos, meu Deus, todos! Mentiras, omissões, desconsideração... Deslealdade. E não dói menos em mim pela deslealdade não ser comigo. Me dói olhar a deslealdade com qualquer criatura. Eis a única coisa que não tolero, e não sei se isso é bom ou ruim. O fato é que não desejo ser de outra forma. Se me flexibilizar neste sentido significa ser como eles, ser um deles... Prefiro ser inflexível como um paredão de rocha. Machadinhas e balança, justiça e lealdade, pai Xangô a me guiar.

Meu senso de lealdade só é comparável ao de um mafioso siciliano: se você mantiver a sua palavra, eu manterei a minha. Até debaixo de uma saraivada de balas.

Inacreditável o quanto nos enganamos com aqueles a quem amamos - e que achamos que nos amam. Impossível amar e ser desleal ao mesmo tempo...

E eis que descubro aquilo que pode fazer de mim, criatura apaixonada, entusiasta e desmedida por excelência, a mais fria das criaturas, coração de gelo, indiferente a qualquer apelo ou argumento.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

AGORA É QUE SÃO ELAS

Começo a entender porque me dedico tanto a Ela, a todas Elas, cuja gestação é longa, às vezes mais de ano, e a existência, breve. Aquelas que vivem em mim por poucas horas por semana, durante uma curta temporada num teatro qualquer. Dedico a Elas, todas, um amor sem medidas ou cobranças, uma devoção absoluta e neurótica, uma doação irrestrita e ofegante. Avassaladoras, todas elas, me tomam de um só golpe, sempre, e depois passam meses me provocando, flertando comigo, até que se decidam a descer por completo e usar meu corpo, minhas mãos, meus olhares, minha voz para que seu verbo se faça carne em mim...

Dedico-me a elas porque tenho fome.

Dedico-me, e me debruço, e me consumo, frente à irresistível tentação de esquecer-me de quem sou, e sê-las. Porque preciso criar. Porque, se não criar, eu me destruo. Porque, se eu não for todas elas, eu deixarei, fatalmente, de ser – não só eu, mas qualquer outra. Porque uma vida me é pouca para ser tudo o que há dentro em mim, e a ideia não ser me dói às raias do insuportável.

Dedico-me a elas, todas, à Joana, à Charlotte, à Elisa, porque tenho sede.

Ser quem sou nunca me basta. Porque sou qualquer coisa entre o que sonhei ser e o que fiz de mim. Nesse meio de caminho, estão Elas, todas elas, que são e serão sempre aquelas que eu poderia ser, caso... Se... Não fosse...

E, afinal, elas não são feitas do ar à minha volta: são feitas da minha carne, da massa das minhas ideias e do fermento da minha emoção. São feitas da minha poesia, das imagens que trago em mim, dos desejos que eu nem sabia que tinha, dos nós das minhas entranhas, da beleza adormecida, da angústia insone, da razão que às vezes cochila.

Acho que, quando sou delas, sou mais minha. Quando me regozijo com seus prazeres e glórias, preencho as lacunas que me dei. Quando vivo a dor de cada uma, banhada em luz, limpo-me da minha própria angústia. São dores boas de se viver: acabam-se quando apaga a luz e cai o pano. Descubro o Brasil a cada vez que a cortina se abre. Um novo continente por temporada.

Elas estão contidas em mim, presas, sufocadas. Quando sou delas, sou de alguém: sou de quem me possui, cativa; o que me tapa os buracos que me deixo. Elas só existem porque eu existo. Porque, não fosse eu, elas não seriam exatamente quem são: teriam o mesmo pai, é fato: o dramaturgo, mas não a mesma mãe, não o mesmo ventre. Elas são a criação; eu, a criadora. Embora elas me arrebatem, e me dominem, e me exijam. E é bom que o façam: sinto que sou importante na "vida" de alguém. Acho que só assim.

Dedico-me a elas porque não tenho ninguém por mim.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ELA-ELISA ou CLAVE DE LUA

(Para aquela que não sou e preciso ser, Elisa, ser de vento e música, alma sem corpo que perambula por sobre os textos, por sobre os palcos, e tenta baixar em meu corpo ainda recheado de mim, incorporar, e sempre evapora antes que eu a apanhe no ar. Pour Elise, minha personagem em "As Bruxas de Salém").


Elisa,

eu, do lado de cá da máscara, me observo em ti. Continuamente me observo em ti, e te pergunto:

Que parte de mim tu és?
Que parte de mim é esse eclipse, névoas, crepúsculos?
Que parte de mim alimentará teus olhos grandes e sonoros, tuas mãos pequenas e nervosas, tua garganta seca, boca amarga, coração duro? Tua frieza de mármore? Tua falta de lágrimas?

E tu, insensível, com o que me respondes?

Um sutilíssimo sorriso. Delicadeza. Silêncio.

Em que semínimas e colcheias tu te escondes?
Em que pausas?
Em que pautas?
Em que pautas tua dignidade de prata quando a clava da justiça esmorece sob o sol?

Pontua. Pontua. Pontua. Colcheias... Elisa-colcheia, meio tempo, meia lua. Contida por excelência, calada pela metade, amarga por inteiro.

Flutua, flutuuuuuuuuua entre legattos e stacattos, música ligadura de união, silêncio ligadura de expressão...

Tu não me respondes, e nessa tua resposta feita de mudez, melodia e olhos sem sal, mostras que a resposta está dentro em mim.

Mais que as notas, tu és as pausas, figuras negativas. Silêncios.

Elisa, minha querida, minha cara indecisa...

Eu, que sou um ser de palavras, emudeço diante de teu silêncio... Para falar a ti pego emprestadas as palavras do Baleiro:

Vem comigo, vem
Já tenho quase tudo que me basta
A flor no pasto
A mesa posta
Minha música e teu (?) calor
Agora só me falta aprender o silêncio.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

SENSAÇÕES

Trinta e seis graus. À sombra.

O suor, lenta mas continuamente, poreja; primeiro imperceptível; depois formando gotículas, gotas, até que escorrem. O sangue lateja nas têmporas. O rosto afogueado queima, arde em brasa. O cabelo, longo, lhe abafa as costas. Toda ela está quente, como um ferro de passar roupa que esqueceram ligado tempo demais.

Ela gira a torneira e põe os dedos curtos debaixo d'água gelada. Depois a mão. Depois o braço. O ombro. As pernas, o tronco, o rosto, a nuca. A água escorre feito metal pescoço abaixo, cabelo abaixo, corpo abaixo. A respiração presa pelo frio cortante do desligado do chuveiro, o rosto perdendo a cor de fogo, o sangue serenando nas veias, o peito refrescado pela vida líquida e gelada, que desce pelo ventre, pelo sexo, pelas pernas, pelos pés – isso é tudo o que preenche seu cérebro, e ela é só pele. Hortelã. Eternidade.

MEMÓRIA ALTERADA

Uma da manhã. Não há mais o que procurar nos links e sites. Ninguém pra teclar. Os olhos quase se fecham, a garganta dói, mas ela persevera. Espera pelo quê? Esperar, esperar... O contínuo esperar.

Sua cama a espera.

Ela espera que a felicidade a encontre amanhã. Já ao acordar. Hoje, seus dedos ainda procuram. E ela continua a esperar.

Será que ela sabe que a felicidade não existe? Que é só uma ilusão? Que a felicidade é algo inventado pelos seres humanos pra tornar a vida possível?

A felicidade só é possível no passado. É uma memória alterada. Fomos felizes porque ensinamos nossa memória que fomos felizes.

Mas ela ignora tal fato, e é feliz por isso.