Sua vida começa a se delinear à sua volta. Levara quase trinta anos a prepará-la, moldá-la, construí-la, costurá-la, eis que sem que ela percebesse muito bem como ou quando tudo começava a tomar forma. As peças do quebracabeças, quase unidas, mostravam vislumbres de sua casa, relances de seu dia a dia futuro, espectros de seu futuro marido. Desta vez, tomara o rio que desaguaria no altar? Se perguntava ao mandar mais um sms pelo celular. Desde os vinte ela vinha se preparando - para o quê, meu Deus? Não sabia dizer. Mas sabia, tinha a certeza de que aos vinte e oito estava exatamente onde deveria estar, a última peça seria colocada e a figura ficaria completa.
Se preparava para o quê, meu Deus!? Mas estava quase pronta.
(Há uns dois ou três anos, quando o terror dos trinta me rondava a porta)
Por tanto tempo rabisquei pensamentos em pedaço de papel, panfleto de propaganda, resto de bloco, de trás pra diante no caderno... sempre à procura de uma costura pra todos esses retalhos. Hoje entendo que meu livro é mesmo assim: um não-livro. E percebo que cada trecho está pronto, ainda que trecho, e concluído porque começa no ar e termina no estalo. Porque trechos, retalhos, reticências, miçangas, miudezas... É disso que sou feita. [E começo a achar que 2+2>4.]
segunda-feira, 28 de março de 2011
SCRIPT BARATO
- E aqui, no fim de todas as coisas, neste pérfido quarto de hotel de quinta, sento-me nesta cadeira manca e acendo este cigarro. O cigarro é cênico. (Ela acende o cigarro.) Eu não fumo.
- Cacos debaixo do tapete.
(Dá uma longa tragada. Após alguns segundos, exala com a garganta, boca aberta em O, um espesso anel de fumaça. E ela se põe a decidir em pensamento os rumos da nação.)
- Cacos debaixo do tapete.
ESVAZIAMENTO
Amo tudo o que amo cada vez menos. Tudo o que me é caro já o foi muito mais, antes. E ainda não sei se isso é um problema ou se é a solução.
Amo menos as coisas. As pessoas. Os lugares. E não estou mais bruta ou seca por causa disto. Comovo-me, alegro-me, fico feliz, me delicio, mas tudo isso passa. Não, não estou embrutecida. Estou mais livre, eis tudo.
E é simples; quanto menos se ama, menos se prende, mais se anda, mais se voa. Pelicanos voam, barcos não. Não voa quem tem asa: só voa quem não tem âncora.
Não tenho tudo o que amo. Mas, que me importa? Nada que me ama me tem.
Amo menos as coisas. As pessoas. Os lugares. E não estou mais bruta ou seca por causa disto. Comovo-me, alegro-me, fico feliz, me delicio, mas tudo isso passa. Não, não estou embrutecida. Estou mais livre, eis tudo.
E é simples; quanto menos se ama, menos se prende, mais se anda, mais se voa. Pelicanos voam, barcos não. Não voa quem tem asa: só voa quem não tem âncora.
Não tenho tudo o que amo. Mas, que me importa? Nada que me ama me tem.
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