Por tanto tempo rabisquei pensamentos em pedaço de papel, panfleto de propaganda, resto de bloco, de trás pra diante no caderno... sempre à procura de uma costura pra todos esses retalhos. Hoje entendo que meu livro é mesmo assim: um não-livro. E percebo que cada trecho está pronto, ainda que trecho, e concluído porque começa no ar e termina no estalo. Porque trechos, retalhos, reticências, miçangas, miudezas... É disso que sou feita. [E começo a achar que 2+2>4.]
sábado, 29 de agosto de 2009
CONTINENTES E CONTEÚDOS
A roupa que a toca está cheia dela. O espelho de prata a olha de soslaio. Ela, estranha desconhecida de si mesma, hesita quando a mão à sua frente se mexe simultaneamente à sua. Estremece. Vertigem. A taquicardia persiste. A febre não cede. Algo em seus próprios olhos lhe é familiar, como se já tivessem sido dela antes de serem dela. Há muito ela deixou de sonhar. Só delira. Ainda não sabe se isso é bom ou ruim. Frio. Há quanto tempo não chora! Há quanto tempo suas lágrimas secaram e sua solidão absurda não escorre? Não saberia mais dizer. E não há sofrimento nisso. A gravidade é que a puxa pra baixo. Meu Deus! Quando, quando, Nossinhora, ela iria pensar que não sofrer não dói?! Os dentes batem. A estranha continua espionando. Como ela vigia de dentro da sua cabeça, ela duvida desses pensamentos. Desconfia. Não está acostumada. Será que foi lavagem cerebral? Será que é definitivo? Será que é grave? Será que ela ainda é a mesma? A mesma da carteira de identidade, das três assinaturas no banco, da firma no cartório, da conta na padaria? Ainda é a mesma dos trinta e sete porta-retratos espalhados pela casa, olhando todos de soslaio (soslaio, adoro essa palavra, soslaio. Soslaio. Soslaio. Repito-a até ela perder o sentido. Soslaio.). Ela olha de soslaio de dentro dela mesma e se esgueira de viés. Resolve sair de fininho antes que fique louca.
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2 comentários:
nossa cíntia...
amei
Também amo Soslaio. A primeira vez que a li, foi num poema do Pessoa sobre Cesário Verde. Ou seria o contrário?
Maio a Maio
A Dercy Gonçalves 101
“Seremos felizes nem que seja na porrada”
Com a agulha do tempo me distraio,
E alinhavo e ponteio vida afora.
De minuto a minuto se elabora
O texto; de hora em hora, maio a maio.
E o tecido dos dias – de soslaio,
Vai ficando pra trás, percebo-o, agora,
– Maltrapilho, molambo, se descora.
Na memória, há amnésia, após desmaio.
Trezentos e sessenta e cinco meios
De burlar a mortalha que costuro
Ao meu próprio velório que custeio.
Porém, saio a coser, com tal apuro,
Que a última investida é sem rodeios.
(Enquanto luto, escrevo o meu futuro).
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