quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

PARA QUANDO O TEMPO SUPRIMIR MINHA PRESENÇA NESTA TERRA

Quando eu me for, considerem este rabisco o meu testamento.

Acalmem-se, acalmem-se todos!

(Digo isto mais por efeito retórico que por sentir protestos efusivos quanto à minha partida.)

(Não que não aconteçam; tudo é possível neste mundo de meu Deus; mas se tem uma coisa que esses vinte e oito anos conseguiram me ensinar, foi: manter os dois pés no chão.)

Não é que eu pretenda voltar pra casa por agora, mas deixo registradas estas palavras, não necessariamente minhas últimas, não necessariamente meu último desejo. Apenas mais algumas palavras.



Minhas fotos, deixem com meus pais, para que cada imagem possa me trazer à lembrança quando meus contornos começarem a sumir de suas mentes – porque, não se iludam, mesmo da mente dos pais, um dia nossos rostos desbotam, e é bom que desbotem... Deixem com eles as fotos que bati e aquelas em que apareço - ainda não sei qual das duas capturou melhor minha alma.

Minhas roupas, doem. Doem tudo: sapatos, saias, bijuterias, agasalhos, tênis, roupas de ensaio (toda a infinidade delas), tudo o mais que puder ser doado. Doem para quem precisa mais que vocês, a quem tentei chegar perto na vida e por covardia, por omissão, por egoísmo, por falta de tempo, nunca cheguei o quanto deveria. Mesmo quando o mundo doía em mim, e o remédio é buscar aqueles que sofrem mais que nós, nunca os alcancei, nunca os busquei de fato - que minhas roupas os alcancem e aqueçam.

Meus escritos, publiquem. Ficarei feliz, onde estiver; pensem assim se os consola. Assim se lembrarão de mim por minha obra, não por esse ser eternamente errante, constantemente incompleto, persistentemente imperfeito. Publiquem meus escritos, uma vez que meu teatro morre a cada vez que fecha o pano, obra fugaz, criação evanescente. Publiquem-me, para que o verbo se faça carne, e eu alcance o infinito.

Minha gata, cuidem. Acendam a luz do banheiro para que ela coma a ração. Nunca ponham demais, porque ela não come ração velha. Troquem a água todos os dias, sempre na vasilha vermelha (ela só bebe nela). Abram a janela às quatro da manhã: ela sempre dá uma voltinha por esse horário. Fiquem tranquilos; ela os lembrará de tudo isso. Gatos são leais. Quando ela deitar na ponta da cama, ou sobre seus pés, agradeçam. Vocês podem nunca saber o valor disso, mas tenham certeza: houve dias em que isso fez toda a diferença entre achar que estou sozinha neste planeta, e ter certeza.

Meu quarto, meus pequenos bens: dispersem. Dêem de presente. Rifem. Façam um bazar. Embrulhem e dêem. Doem-me. Façam minha energia circular; eis a única maneira de me reter. Por mais tempo que eu tenha dedicado a me registrar no meu quarto nesta terra, na cor de suas paredes, nas lantejoulas das almofadas, no brilho das contas em cada canto do quarto, em cada detalhe que me imprime naquele lugar, estejam certos: depois que eu me for, nada disso me terá importância.

E, finalmente, meus textos de teatro: queimem. Queimem tudo, apesar de ecologicamente incorreto. Pois só pelo fogo, cremação, combustão completa (pena que não expontânea, caso em que eu seria mais feliz), os fragmentos da minha alma poderão se reunir a mim no ar, no éter, redenção plena e derradeira, e me completar. Cada personagem que passou por mim levou parte do que fui de nascença, e eis a única maneira de me restituir minha completude, ainda que em morte.

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